A Globo sem maquiagem

Ainda muito jovem, em março de 1964, vi nas ruas da minha querida Salvador tropas do Exército Brasileiro batendo, atropelando com cavalos e prendendo as pessoas.

Você faz ideia do que é um garoto, aos treze anos de idade, ver o exército do seu país, que tem como uma das suas funções, proteger e defender a nação brasileira, batendo no seu povo? Você faz ideia do que cenas desse tipo podem provocar na cabeça de um garoto com treze anos de idade?

O garoto viu nos dias seguintes nas bancas de jornal e principalmente na televisão, que começava a ganhar grande espaço no imaginário da população, comentários, declarações, manchetes, todas dando as boas vindas ao novo regime que a partir dali se instalaria no país.

Mesmo para um garoto que nessa idade não entende o significado de tudo isso, nas bancas de jornal uma manchete chamara a atenção, talvez pelas letras garrafais. Na primeira página do jornal O Globo, de 02 de abril de 1964, estava o seu editorial, com o título: RESSURGE A DEMOCRACIA.

Ele acabara de aprender na escola que “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Agora via, com uma clareza assustadora, a realidade que negava os livros: o governo não era do povo, não era exercido pelo povo e muito menos para o povo.

Alguns poucos anos depois começou a entender que o que já tinha se transformado no Sistema Globo de Comunicação, Rede Globo, não apoiava as manifestações populares. Não só ajudara a repressão feita com os cassetetes, cavalos, bombas e tanques de guerra nas ruas das principais cidades do Brasil, como agora exultava no seu editorial. As manifestações populares eram reprimidas sob os aplausos da Globo e, pior ainda, com a sua ajuda.

Estamos agora na década de 1980, quando as manifestações populares voltaram a ganhar força e surge o movimento Diretas Já, provavelmente o momento mais bonito da história política brasileira contemporânea. As manifestações do Diretas Já tomaram conta de todo o país. O povo nas ruas, pessoas chorando de emoção pela força e beleza daquele momento. Todo o Brasil unido.

Perdão, me entusiasmei demais, não era todo o Brasil; a Rede Globo estava contra. Escondeu, abafou manipulou, distorceu, fez tudo ao seu alcance para matar um movimento popular jamais visto no Brasil. Chegou ao ápice da manipulação quando Marcos Hummel (hoje na Record) disse no Jornal Nacional (o mesmo jornal que você assiste todos os dias), “um dia de festa em São Paulo, a cidade comemorou seus 430 anos com mais de quinhentas solenidades, a maior foi um comício na Praça da Sé”. Sabe que comício foi esse? O da campanha Diretas Já. Como não podia esconder um evento daquela importância e tamanho, a Rede Globo tentou transformar a manifestação popular mais importante da história do Brasil em uma comemoração pelo “aniversário da cidade de São Paulo” (veja o primeiro vídeo abaixo).

Veja o que disse Ali Kamel, o hoje todo poderoso diretor de jornalismo da Globo:

“A Globo registrou esses comícios pelas Diretas nos seus telejornais locais. Naquele primeiro momento, as manifestações não entraram nos noticiários de rede por decisão de Roberto Marinho.”

O próprio Ernesto Paglia (você vai ver no vídeo que foi o repórter – até hoje na Globo – que fez a reportagem) teria admitido em alto e bom som, no meio da redação, que Kamel havia pesquisado e levantado um VT não exibido do arquivo. “Perguntei ao Paglia porque ele não desfazia este mal entendido, então. Ele respondeu candidamente: “Há certas coisas que é melhor a gente não mexer.” Mas, Paglia, é a história do Brasil, disse estupefato. Anos depois, encontrei na TV Record o Valdir Zwetsch que confirmou: “o VT foi gerado para o Rio, mas o JN naquela noite optou por exibir uma nota coberta informando apenas tratar-se de festejos do aniversário de São Paulo.”

A Rede Globo mostrava outra vez a aquele garoto, agora adulto, que era contra as manifestações populares.

Em 1989 a Globo e a Veja fabricaram o Caçador de Marajás, Fernando Collor de Mello que, depois de manipulações da Globo (conhecidas há muito tempo e recentemente reconhecidas oficialmente por Boni, o todo poderoso da Globo na época), foi eleito presidente do Brasil, tomando posse em 1990.

Já em 1992, ocorreu o seu impeachment. Durante esse processo, surgiu o movimento dos caras pintadas, jovens que foram as ruas com os rostos pintados para se manifestar pela saída de Collor. Nem de longe se parecia com o Diretas Já, mas foi um movimento muito interessante.

Não houve confusão, incêndios, depredações, invasões, ninguém falando “foda-se o Brasil”, agressões de membros das manifestações a outros membros das próprias manifestações, nada disso. Os jovens tinham uma bandeira pela qual lutar. Se fossem perguntados porque estavam ali tinham a resposta pronta, porque de fato sabiam porque estavam ali. As bandeiras de todos os partidos estavam em todas as manifestações.

Quem não estava presente? A Globo. Ficou até o final ao lado do seu caçador de marajás. A Globo, mais uma vez, estava contra o povo e a favor dos seus interesses particulares. Mais uma vez tentou abafar as manifestações popu
lares e mais uma vez também mostrava ao agora adulto, outrora aquele garoto, que ela abominava as manifestações populares.

Movimento do Passe Livre (MPL), 2013. Estudantes vão às ruas para se manifestarem contra o aumento de vinte centavos nas passagens de ônibus em São Paulo.

No início repreendida pela força policial da forma costumeira, com violência desproporcional, houve reação e as manifestações se tornaram também violentas. A tradicional mídia brasileira (Folha, Estadão, Veja), tendo à frente a Globo chamou os “garotos” de tudo, ‘terroristas’, ‘baderneiros’, ‘vândalos’, ‘vagabundos’ e ‘remelentos’ (um artigo no site da Veja sugeriu passar ‘fogo neles’).

Um dos seus mais violentos comentaristas, o pobre Arnaldo Jabor, o homem que sabe tudo de nada, partiu pra cima dos manifestantes, chamando-os de tudo e dizendo que não valiam 20 centavos. Foi quando a Globo percebeu que podia tirar muito proveito daquele cenário. Então, em um dos episódios mais ridículos e vergonhosos da televisão brasileira, o pobre arnaldo jabor foi obrigado a engolir as palavras e pedir desculpas. Ali ficara claro; a Globo ia “entrar” nas manifestações.

Dito e feito, a Globo entrou. E quando ela entra, nada mais é autêntico.

A maior parte dos manifestantes, os que conhecem muito bem o que é a Globo, repudiaram de imediato a sua presença. TODAS as suas equipes de reportagem foram expulsas das manifestações e ela chegou ao ponto de retirar os repórteres conhecidos e usar somente aqueles desconhecidos do público, com um detalhe; sem a logomarca da emissora nos microfones. Ali estava a demonstração mais clara que se podia ter do total repúdio de quem sabe o que ela é. A essa altura, entretanto, “outros” jovens e pacíficos manifestantes (skinheads, encapuzados, policiais disfarçados…) já faziam parte das manifestações. Do futebol (até Galvão Bueno, com a sua costumeira espontaneidade) às novelas, nada ficou sem espaço na programação da emissora para a exibição das manifestações “pacíficas e ordeiras” daqueles jovens tão interessados em corrigir os rumos do país.

A Rede Globo, que sempre esteve contra todas as manifestações populares, agora está comandando uma “manifestação popular”.

A Globo está apostando no caos.

Obs. Além do Cidadão Kane é um documentário produzido pela BBC de Londres – proibido no Brasil desde a estréia, em 1993, por decisão judicial – que trata das relações sombrias entre a Rede Globo de Televisão, na pessoa de Roberto Marinho, com o cenário político brasileiro. É um pouco longo para quem não está acostumado com documentários, mas vale a pena ver. Voce pode ve-lo no segundo vídeo.

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