O escritor

Em uma crônica falei de um garoto negro que era meu vizinho e tinha sido o maior amigo da minha infância. Alguém lê, diz que gostou e que, como eu, também teve “dois pretinho” na infância. Como eu, não. Eu não disse que na minha infância teve um pretinho, disse que o maior amigo da minha infância foi um garoto negro.

O senador americano Barack Obama, negro, ganhou prévias do partido dos Democratas (nada a ver com o daqui, pelo amor de Deus) em alguns estados americanos. “Viu quem ganhou as prévias nos Estados Unidos, um pretinho”?

Não deve ser um pretinho. Apesar de não ser uma sociedade que possa servir de exemplo em termos de sensibilidade e bom senso, ele não deve ser qualquer um para chegar ao senado americano, ainda mais por ser negro. O pretinho seria um homem negro pequeno, de pouca estatura física?

Deve ser bom ser escritor. Ele se vinga de tudo. Ele joga no papel todas as suas mágoas, frustrações, revoltas, medos. Ali, no papel, ele trava todas as suas batalhas e, se quiser, vence todas. Existe coisa melhor? Travar qualquer batalha e vencer todas. A da injustiça, do preconceito racial, político, social. Nada fica travado dentro de você, nada vem “até aqui”, sai tudo.

Numa categoria mais abrangente de escritor, entram outras, como jornalista, autor de teatro, de novelas. Peguemos um autor de novelas como exemplo, até porque o alcance da sua obra é enorme.

Alguns autores de novela são reconhecidos homossexuais, e não vai aqui nenhum juízo de valor, até porque alguns deles não demonstram nenhuma preocupação em esconder a sua homossexualidade, pelo contrário. O homossexualismo já foi retratado de diversas maneiras nas novelas brasileiras, mas vamos à última, Paraíso Tropical, da Rede Globo, em que dois jovens atores, bonitos, fizeram um casal homossexual. Perceberam como foram retratados? Um casal perfeito, sem defeitos. Mais uma batalha vencida.

Chama a atenção a atual novela das oito, também da Globo. Um ator negro, Lázaro Ramos, em um dos principais papéis, faz um favelado que namora uma menina rica (Débora Falabella) da zona sul do Rio de Janeiro e, claro, branca. Cenas quentes de beijos e erotismo. Glória total (ou desgraça?). Posso quase afirmar que existem algumas pressões para acabar com essa “sem-vergonhice”. Se não posso assegurar isso, posso assegurar que o desconforto é grande para muita gente.

Atores negros sempre tiveram dificuldades para encontrar papéis importantes na televisão de brancos (existe outra?), razão pela qual sempre representam criados, porteiros, faxineiros, etc. Grande Otelo, único na sua época, superou isso e sempre foi respeitado, pelo menos na classe. Você é capaz de lembrar quantos mais? É possível que esqueça de alguns, mas, mais recentemente, Milton Rodrigues, Ruth de Souza, Taís Araújo. Não colocaria Camila Pitanga, por não ser uma negra nos padrões típicos.

Mas, sem dúvida, Lázaro Ramos chegou arrepiando. Não sei se também há algum casal homossexual, ou alguém que represente outra “minoria”, mas, ao colocar um negro como par romântico de uma branca em Duas Caras, Aguinaldo Silva, o autor (não é quem escreve um escritor?) teve coragem. Não deixou vir até aqui, botou pra fora. Ganha mais uma batalha.

Dá para imaginar o prazer que sente o escritor, como devia sentir Nelson Rodrigues, ao escrever cada texto retratando a sociedade brasileira? Não, não dá. Deve ser indescritível.

É bom demais ser escritor.