Do tema “Tudo que você sempre quis saber sobre Endodontia mas tinha vergonha de perguntar”
Por Ronaldo Souza
Uma das questões mais recorrentes em Endodontia é a preocupação com o alargamento do canal.
Quanto alargar sempre foi e é um dos temas mais importantes e mais debatidos em Endodontia.
Antes, porém, de entrarmos nesse tema, faço algumas considerações.
Não gosto da expressão “alargamento do canal” e não a uso.
Mesmo que não se tenha percebido, há diferença entre alargamento e preparo do canal.
Ainda que para ambos usemos os mesmos instrumentos e o canal seja ampliado nas duas situações, é preciso entender melhor essa questão.
Tendo como objetivo o alargamento, muitas vezes surge um compromisso “obrigatório” com ele.
Desde tempos mais remotos sempre existiram dois aspectos que, se não impediam, dificultavam bastante o cumprimento desse objetivo; a pouca qualidade dos instrumentos, principalmente no que dizia respeito à sua flexibilidade, e a anatomia dos canais, particularmente com relação à presença de curvaturas.
Pelo menos por enquanto, deixemos de lado os recentes avanços na qualidade dos instrumentos. Em outro momento serão considerados.
A instrumentação que “exigia” o alargamento se deparava então com os frequentes desvios do canal promovidos por instrumentos de pouca flexibilidade trabalhando em canais curvos.
Inteligência e sensibilidade são duas armas poderosíssimas diante de dificuldades operatórias.
Alguns profissionais possuidores dessas características foram percebendo que o canal bem alargado podia até produzir belas imagens radiográficas após a conclusão da obturação, mas os resultados a médio e longo prazo eram muitas vezes frustrantes.
Desviar significa sair do caminho.
Desviar um canal significa abandonar o canal original, sair dele.
Se nele não estou como imaginar que o estou limpando?
A necessidade de compreender isso contribuiu de forma decisiva para o surgimento há anos atrás de técnicas como a escalonada, fosse ela programada ou anatômica.
Ali estava o desejo alcançado; alargar, com riscos menores de desvio.
Mas ali também estava “escondida” a solução, que poucos perceberam.
Se a anatomia do canal (sua curvatura) não me permite o alargamento desejado, eu o farei nas porções mais retas e amplas (escalonando proporcionalmente de acordo com cada segmento do canal, terços cervical e médio) e respeitarei as suas porções mais curvas e delicadas (terço apical).
Muitos não perceberam, mas já não vigorava mais o alargamento.
Com a preocupação agora voltada para a possibilidade e não para o desejo, instrumentava-se o quanto era possível e de acordo com cada segmento do canal.
Era o preparo que agora dava as cartas, não mais o simples alargamento.
Aliando-se isso à necessária habilidade manual de cada operador, estaria ali um profissional com grande potencial.
Para tornar mais fácil a compreensão, vamos usar a regra mais famosa que orientava o quanto instrumentar.
O tratamento de canal com 1 + 3 (polpa viva) e 1 + 4 (polpa necrosada).
Um mais três e 1 + 4 significam o uso de um instrumento inicial e mais três ou quatro em aumento sequencial de calibre, conforme seja polpa viva ou necrosada.
Quem determinou e por que seriam 4 instrumentos na polpa viva?
Não seriam 5, 6, quem sabe 7, ou somente 3 ou 2?
Poderia ser somente um?
Não são consideráveis as diferenças entre tratar um canal com polpa viva e um com polpa necrosada?
Não são diferentes os percentuais de sucesso do tratamento quando realizado em uma ou outra situação?
Qual a razão maior para essa diferença?
O fato de tratar um canal livre de microrganismos e outro povoado por eles.
Se, segundo a regra, seriam necessários 4 instrumentos (1+3) para instrumentar o canal com polpa viva, por que devo acreditar que somente mais um instrumento (1+4) é suficiente para exercer um efetivo controle de infecção em um canal que, diferentemente daquele com polpa viva, agora está infectado?
Quantos professores ensinaram assim?
Quantos ainda ensinam?
Continuemos juntos a nossa viagem.
Que antibiótico você usa?
Usa sempre o mesmo em todos os casos, com a mesma dosagem, tempo de uso…?
Por que o mesmo tratamento deu certo em um paciente e falhou em outro?
Estenda essas questões para as diferentes patologias em Medicina e veja as possibilidades e alternativas que se abrem.
Quem tem o domínio sobre isso?
A literatura endodôntica é unânime em dizer que quem dita o quanto se deve alargar são as condições anatomopatológicas.
Se você encontrar um livro ou artigo que diga o contrário, por favor me mostre.
Imaginemos uma situação.
Você vai fazer um tratamento endodôntico no incisivo central superior com polpa viva de paciente adulto jovem.
Pelo seu volume, esse canal permite que normalmente você inicie com instrumentos de calibre na faixa entre limas 35 e 45 e que sem maiores dificuldades use mais três na sequência de instrumentação.
Um exemplo então seria começar com a lima 40 e terminar com a 55.
O canal foi obturado e o paciente liberado para restaurar o dente.
Digamos que por qualquer razão que seja, o tratamento falhou, surgiu uma lesão periapical e esse paciente volta ao seu consultório.
Ninguém retrata removendo a obturação e simplesmente pondo outra (se bem que alguns estão praticamente fazendo isso – deixa pra lá, quem sabe seja tema para outra conversa). Um novo tratamento deverá ser feito, pelo menos é isso que se imagina.
Você vai desobturar, fazer nova instrumentação e depois nova obturação.
Na ficha clínica do paciente consta que no tratamento você instrumentou até a lima 55.
Sabendo que agora você está diante de uma lesão periapical, o que todos recomendam e fazem?
Alargam mais o canal. E aí dá tranquilamente para ampliar mais com a 60, 70, 80 e até mais, não é mesmo?
Ótimo.
Agora chega ao seu consultório um paciente para fazer o tratamento endodôntico do primeiro molar superior com polpa viva.
Você preparou os canais e percebeu que o mésio-vestibular deu um pouco mais de trabalho, mas você conseguiu instrumentar até a lima 35.
Obturou os canais e o paciente está liberado.
Tal qual o outro, também por qualquer razão que seja, o tratamento falhou e o paciente volta ao seu consultório, agora trazendo uma lesão periapical na raiz mésio-vestibular.
Você não esquenta a cabeça.
– Ah, que nada. Já fiz isso naquele paciente do incisivo central superior. Vou desobstruir, alargar mais, afinal estou diante de uma lesão periapical, e vou obturar.
Vamos nos ater somente ao canal mésio-vestibular, que é onde existe a lesão.
Você desobstruiu e agora, como fez no central, vai alargar mais, neste caso com as limas 40, 45, 50…
No mésio-vestibular do molar superior!
Aí você se lembra que teve uma “dificuldadezinha” para instrumentar até a # 35 daquela vez e agora “terá” que preparar até a lima 50.
Conseguiu?
Mas vai ter que conseguir.
Você nunca ouviu essa frase do seu professor?
– Vai ter que alargar mais, vai ter que levar até a lima…
No retratamento do incisivo central superior, você estava diante de uma lesão periapical, desobstruiu o canal, alargou até a lima 80 ou mais e obturou outra vez.
Agora você está diante da mesma patologia, portanto precisa fazer a mesma coisa, isto é, alargar mais, no exemplo dado pelo menos até a lima 50.
Diante da mesma patologia, lesão periapical (quer a expressão mais correta? Periodontite apical crônica; tudo bem agora?), o compromisso, desejo e recomendação é alargar mais.
Por que em um canal você conseguiu e no outro não consegue?
Por causa da curvatura?
Perfeito.
O que diz a literatura?
“Os níveis de ampliação do canal são determinados pelas condições anatomopatológicas”.
Ainda que ela oriente assim e seja esse o seu desejo, quem foi que não permitiu que você fizesse isso no mésio-vestibular?
A curvatura.
Percebeu então que quando a literatura diz que “os níveis de ampliação do canal são determinados pelas condições anatomopatológicas” ela comete um equívoco?
Quem determina os níveis de ampliação é a anatomia.
E você já observou isso.
Só ficou com receio (a palavra medo é muito forte, não é?) de dizer.
Ou você alarga o canal reto e curvo do mesmo jeito, com a mesma facilidade?
Finalmente, quantos instrumentos então devem ser usados para preparar o canal?
Não sei.
Quem sabe?
Quem souber, por favor se apresente.
Então façamos o seguinte.
Se a anatomia do canal permitir, use em torno de 4 a 6 instrumentos.
Quando possível e necessário, quem sabe um pouco mais.
Quando não, um pouco menos.
Não é quase que o mesmo que usar a regra do 1+3 e 1+4?
Sim.
Entretanto, dito de outra forma.
Que pretende ser uma maneira de fugir das regras previamente estabelecidas.
Usa-las como orientação, jamais como compromisso obrigatório.
Ninguém tem que instrumentar até a lima…
Ninguém tem que usar tal instrumento.
Ninguém tem que usar tal material.
Ninguém tem que fazer isso, fazer aquilo.
Pensar e fazer assim torna a Endodontia pobre.
Muito pobre.