Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade – final

Por Ronaldo Souza

Estamos chegando ao final desse tema.

Como é objetivo do site desde o início, a ideia é conversarmos de maneira informal, com linguagem leve (será que light ficaria melhor?), “fugindo” daquela que se usa em textos formais, para publicação.

Apesar de ser um tema forte (o título já mostra isso), acho que conseguimos essa linguagem, mas é possível que alguém tenha tido a impressão de que eventualmente houve algum momento um pouco mais duro. Não foi essa a intenção.

Acredito, porém, que o mais importante é que tivemos oportunidade de conversar sobre alguns pontos interessantes da Endodontia e que precisam ser bem esclarecidos.

Essa parte final que você vai ler agora me deu espaço para ficar mais leve ainda.

Vamos ao último questionamento do mestre.

  1. M – Para finalizar, nao vejo relacao entre o titulo do trabalho e a conclusao do artigo. Perceba que se chama atencao para o limite apical de instrumentacao e obturacao. Contudo, nao houve diferenca entre os limites utilizados durante o tratamento inicial e o retratamento. Entao, nao ha sentido em se tentar correlacionar o sucesso do tratamento com o limite apical utilizado.

R – Amado mestre, aí é inevitável que eu peça venia para recorrer a Rolando Lero, grande personagem de Rogério Cardoso na Escolinha do Professor Raimundo.

Para beber na fonte da sapiência e sorver conhecimentos é necessário libertar-se dos grilhões da má fé e da obtusidade. Para isso amado e idolatrado guru, convido-o a vir comigo na caminhada rumo ao altar dos Deuses da Endodontia para que, em chegando lá, possamos nos inebriar com o doce vinho da inteligência.

A proposta do trabalho é ver se o limite apical da obturação tem relação com o sucesso no tratamento endodôntico.

Se eu tivesse feito um CT no tratamento e outro diferente no retratamento, um homem inteligente como o senhor, luz nas trevas endodônticas, poderia dizer; ele corrigiu o CT no retratamento e por isso deu certo.

Imagem1

Diga-me príncipe do saber!

Estaria eu errado?

Agora me acompanhe amado mestre e veja se concorda comigo. Quando os canais foram tratados estavam com polpa viva e deu “errado”; apareceram as lesões periapicais. Quando foram retratados com os mesmos limites apicais da obturação deu certo; desapareceram as lesões periapicais.

Será que eu posso dizer algo como:

Olha pessoal, parece que o limite apical da obturação não tem muito a ver com o sucesso do tratamento endodôntico.

Qual é a linha de raciocínio?

Ora, se eu usei determinado limite e deu errado no tratamento e depois usei o mesmo limite e deu certo, será que posso imaginar que o sucesso do tratamento endodôntico não tem relação com o limite apical da obturação?

O senhor não acha que somente assim, ou seja, fazendo os dois tratamentos com o mesmo CT eu poderia chegar a essa dedução?

Se disseres que sim, oh predestinado guru, serei o mais feliz dos endodontistas.

Agora veja a conclusão do trabalho:

“Results suggest that the apical limit of obturation seem to have no influence in the repair of periapical tissues in mandibular molars. Clinical studies focusing this question should be done on molars and other groups of teeth.”

Tradução ao pé da letra (literal ficaria melhor, não é?):

“Os resultados sugerem que o limite apical da obturação parece não ter influência no reparo dos tecidos periapicais em molares inferiores. Estudos clínicos com foco nessa questão devem ser realizados em molares e outros grupos de dentes”.

O trabalho não conclui, apenas sugere que parece

Amado mestre, qual seria a melhor alternativa para o senhor? Não conseguir ver o óbvio porque a visão é curta ou não ver porque não quer ver?

A primeira seria a menos ruim, afinal a ignorância costuma ser perdoada. A ausência de dignidade não.

Peço perdão pela franqueza, mas acho que o senhor não se perdeu entre uma e outra.

O senhor se abraçou com as duas.

Não sei quem observou no canto inferior esquerdo da primeira página do artigo o seguinte:

Received for publication Dec 21, 2010; accepted for publication Jan 6, 2011.

Isso significa que ele foi recebido e aceito para publicação em exatamente 16 dias (entre o Natal e o Reveillon, período em que acho que até os americanos devem pelo menos diminuir o ritmo de trabalho). Assim, é possível até que nem tenha ido para um revisor. O próprio editor, Larz Spangberg, teria então aprovado o artigo.

Já pensou se ele manda para um revisor como o mestre que fez esses questionamentos?

O artigo não teria nenhuma chance.

Em julho a publicação desse artigo completa 5 anos.

Confesso que durante algum tempo alimentei o desejo de encontrar o expert (ou devo dizer encontra-los?) em um debate, simpósio ou até mesmo que estivesse(m) na plateia de uma aula minha, para puxar essa discussão, pois acho que seria bem interessante.

Mas existe uma coisa chamada tempo, o “compositor de destinos”, como diz Caetano na sua bela música.

Ele ensina a se colocar acima de determinados acontecimentos.

E ainda que o ambiente da Endodontia não seja tão nobre quanto poderia ser, aprendi que ela está acima dos meus anseios pessoais.

Em 2014 pude mostrar isso a mim mesmo.

Mas essa… é outra história.

Quem sabe algum dia…

Contudo, começando a fechar a nossa conversa, se fui “prudente” ao dizer que o artigo “não conclui, apenas sugere que parece…, o que é recomendável em textos formais, ainda mais tratando-se de um caso clínico, posso lhe assegurar que o limite apical da obturação não é fator determinante para o sucesso.

O tratamento postado aqui (ver imagem abaixo) não foi casual. Mais uma vez, observe os diferentes níveis apicais da obturação com os mesmos resultados, isto é, cura das lesões periapicais.

Imagem 2'

Ele faz parte de outro projeto, sobre o qual me permito não fazer maiores comentários por enquanto.

A literatura esteve equivocada sim durante pelo menos 60 anos ao ensinar a obturação como fator determinante do sucesso em Endodontia.

Quantos trabalhos de conclusão de curso, monografias, dissertações, teses… já foram realizados, por exemplo, sobre cimentos obturadores?

Onde estão as evidências da imprescindibilidade do vedamento hermético?

Onde estão as evidências que comprovam a existência de vedamento hermético?

Se não há, por que insistiram em afirmar a necessidade de?

Quem e quantos investiram boa parte da sua vida como pesquisador em cima dessa concepção?

Esses trabalhos não têm valor?

Claro que tem, mas essa história precisa ser recontada.

A obturação precisa ser repensada.

E pode apostar que não demora muito e temas como “repensando a obturação” farão parte dos congressos, jornadas, encontros… pelo Brasil afora e na sequência virá o “repensando o papel da obturação”.

Mas essa também é conversa para outro momento.

Em uma entrevista à revista IstoÉ, em setembro de 2009, perguntaram a Olga Soffer, antropóloga e arqueóloga da Universidade de Illinois, co-autora do livro “Sexo Invisível”:

 – E o que está errado?

 – Não é a Ciência. Alguns acadêmicos é que são arrogantes e se esquecem da mera condição de ser humano.

É natural que todos queiramos ter o nome atrelado a um projeto de sucesso. Não há nenhum pecado nisso.

Mas há maneiras e maneiras de se alcançar um objetivo. Tentar atropelar e passar por cima de quem quer que seja só revela a dimensão de cada um. E sempre terá um preço.

Precisamos entender que o reconhecimento do sucesso de algo que idealizamos-criamos-desenvolvemos é ótimo para o nosso ego, não para a Ciência.

Para a Ciência, aquela com C maiúsculo e praticada por investigadores que possuem honestidade intelectual, não importa quem descobriu e sim que foi descoberto.

No dia que entendermos assim, deixarão de existir, ou pelo menos existirão numa intensidade menor, esses comportamentos tolos de tentar esconder uma ideia que surge, a construção de uma nova linha de raciocínio, a proposta de mudança de concepção.

Até porque não é tão simples conseguir.

Não se investe numa linha de pesquisa por anos a fio e um belo dia a pessoa acorda sugerindo um repensar, sem que aparentemente nada de novo tenha acontecido.

É possível que poucos percebam, mas percebem.

E aí nos tornamos vulneráveis.