Por Ronaldo Souza
Chegara a minha vez.
Distraído, sem levantar a cabeça ponho os 2 produtos para que a moça do caixa registre o valor e eu possa pagar.
Cartão já para inserir na “maquininha”, só aí me dei conta de que não tinha dado boa tarde a ela.
Cumprimentei-a então e pedi desculpas tentando me justificar.
– Estava tão distraído que não falei com você. É que estava lendo aqui (no celular) que mais um imbecil agrediu Chico Buarque (acho que precisei desabafar).
– Ah, o poeta, ela respondeu.
– Não, ele é cantor.
Tinha entrado na conversa uma jovem de cerca de 30 anos, bonita, bem vestida, a próxima da fila a chegar ao caixa.
– Eu sei, falei poeta porque ele tem coisas bonitas. É um poeta!
Respondeu a caixa.
A nossa mania de pré-julgar.
Espantei-me que uma caixa de supermercado sabia quem era Chico e a mocinha bonitinha e bem vestida não sabia.
“Cantor”.
Sei que ele é também cantor.
Mas na cabeça dela, da mocinha bonitinha, Chico era um “cantor”.
Percebe?
Pablo é cantor, Fábio Júnior é cantor, Michel Teló é cantor, Wesley Safadão é cantor, Durval Lelis é cantor…
Fico com a caixa.
Poeta.
O novo imbecil que agredira a família Buarque é um colunista.
Tinha entrado no Instagram da filha de Chico, Silvia Buarque, que postou uma foto dela com a irmã e o pai, o “cantor”, e agredira a família.
“Família de ladrões” e mais um monte de asneiras.
Entram no Instagram ou no face book de alguém e, gratuitamente, agridem.
Geralmente carregadas de grande teor de inteligência, sensibilidade e profundo conhecimento sócio-político, as ofensas obedecem a um padrão:
“Você é um idiota”.
Esses microcéfalos se reproduzem disseminando um Zika vírus específico que ataca o cérebro de jovens e adultos.
Saíram dos teclados e foram para as ruas, avenidas, restaurantes, hospitais, velórios, maternidades para agredir os que pensam, os “idiotas”.
Parece haver um comando de caça aos “idiotas”.
Nem o “cantor” escapou.
Com derivações que vão pelo mesmo caminho e com a mesma profundidade:
“Você é petista e petista é merda”.
E todos eles estavam ali, naquele momento, agredindo Chico.
Todos se viram representados naquele momento de glória em que, ao interpelar Chico, viram-se no mesmo andar dele.
Sem fazer a menor ideia de quem é aquele “cantor”.
Diz a Bíblia que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus.
Adão teria sido então o primeiro homem a mostrar o fracasso da tentativa de Deus.
Lembro de uma das respostas de Miguel Nicolelis, cientista brasileiro, um dos maiores do mundo na área de Neurologia, quando lhe perguntaram se Deus existe.
– Não, para a Ciência não existe Deus. Para a Ciência existe Ciência.
Será sempre difícil falar de Deus
Mas talvez não dos Deuses.
Da mitologia grega, por exemplo.
Existem muitos deuses, inclusive os falsos.
Os deuses de barro.
Aproxime-se um pouco mais deles e os identificará com relativa facilidade.
O desencontro que parece haver entre a aceitação da existência de Deus e a Ciência não deve ser maior que o existente entre Deus e o homem, Criador e criatura.
O homem perdeu a dimensão do que é ser grande e claro isso o tornou muito pequeno.
A noção da grandeza de espírito se perdeu na imensidão da pequenez do homem.
E como se tornou imensa a imensidão da pequenez do homem!
Mas há homens que se transformam em deuses.
Irradiam luz por onde passam, quando falam, quando calam, no gesto, na palavra simples, na atitude.
Em determinados momentos, os deuses podem, mesmo que não seja essa a intenção, num gesto simples nos mostrar toda a sua grandeza e assim nos fazer ver mais facilmente ainda a distância que existe entre eles e os mortais.
Principalmente mortais que sequer se sabem diante deles.
Mas, estando, desaparecem, sem nunca terem realmente aparecido.
Esses deuses crescem e se iluminam na discussão que não houve.
Que não deixaram acontecer.