Por Ronaldo Souza,
Já falei sobre Dito aqui mesmo em um texto sobre o Natal.
Negro, pobre, muito pobre, vizinho e maior amigo da minha infância em Juazeiro (BA).
É como se eu a estivesse vendo agora, aqui, na minha frente.
Segunda casa à direita da minha, a de Dito não tinha sanitário.
Era “lá atrás” no fundo do quintal, com um muro de meia altura na frente.
Fazia-se ali.
Àquela época Papai Noel já me conhecia, mas não conhecia Dito.
Nunca foram apresentados.
Brincamos juntos durante anos e aos 9-10 anos de idade, como éramos bons de bola já jogávamos com os “grandes”.
Viemos, eu (11 anos), meus irmãos e meus pais, morar em Salvador, a capital.
Era uma prova de que a vida estava olhando para nós.
A vida nos via e nos aceitava.
Dito ficou.
Eu o vi mais algumas vezes durante as idas a Juazeiro, cada vez menos frequentes.
Até que um dia soube da sua morte.
Morrera afogado.
Na Ilha do Fogo.
Uma ilha entre Juazeiro (BA) e Petrolina (Pe), onde costumávamos ir escondidos com outros amigos tomar banho de rio.
Naqueles tempos já se sabia que tomar banho ali era muito perigoso, a correnteza do rio era mais forte. A ilha fica bem no meio do rio.
Se algum dia Dito teve o direito de sonhar, muito precocemente os seus sonhos se foram com ele.
Lembrei-me dele nesta semana.
Logo após o almoço de segunda-feira (18), dia seguinte a aquela cena dantesca dos deputados federais em Brasília no domingo, vi a troca de mensagens naquela mesma noite no “feicibuqui”.
Chama-la-ei de Jéssica, para homenagear-lhe nesse momento em que a arte imita a vida.
O triunfo de Jéssica no cinema é a vida real transposta para as telas, mas, ao mesmo tempo, ameaça tornar-se uma tragédia grega.
Ao chama-la de Jéssica mantenho-a na corda bamba da vida e da arte, que sempre nos ensina, mas preservo sua identidade, razão pela qual, mesmo autorizado por ela a usar ambos, pus tarjas pretas no seu nome e nas suas fotos.
De família humilde, também negra, foi o primeiro membro da família a por os pés numa faculdade e, se não me engano, até agora o único.
Jéssica se formou.
Graças a um dos programas do governo.
Trabalha e há pouco tempo comprou o seu primeiro carro.
A vida começava a olhar para Jéssica.
Ela começava a se ver no espelho da vida.
Não, calma, como Dito, Jéssica não morreu.
Mas tenho medo de que deixe que morram as suas perspectivas, a força de continuar lutando.
Ah, essa intolerável e repugnante invisibilidade de seres humanos.
Essa insuportável estupidez humana.
Jéssicas, Danis, Maiaras, Cristinas, Tânias, Tatianas, Marias…
Dificuldades surgirão e não deverão ser pequenas.
Mas nunca se esqueçam.
“Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos” (Shakespeare).
E sonhos não morrem.