As pedaladas de Anastasia atropelaram o que ainda restava de dignidade ao Senado

Por Ronaldo Souza

Mal tinha acabado de escrever e postar um texto no meu site, fui ler o texto abaixo e tomei um susto.

Fui conferir em outros blogs e percebi que eles já estavam tratando do mesmo assunto.

Ou seja, era verdade.

Kiko Nogueira mostra que o senador Anastasia, relator da comissão especial de impeachment da presidenta Dilma no Senado, citou três advogados brasileiros para embasar o seu relatório.

Até aí nada demais, muito pelo contrário.

Ocorre que o senador Anastasia usou de má fé pois, ao tirar do contexto o artigo dos autores citados e colocar o que lhe parecia ser favorável e que daria respaldo ao seu relatório, fez a interpretação que quis.

Vou deixar que você próprio veja o que ele foi capaz de fazer lendo o texto de Kiko Nogueira, logo abaixo deste.

Mas não sem antes chamar a atenção para o fato de que o advogado José Eduardo Cardozo, da AGU, já o tinha flagrado em outro momento desse, ou seja, omitindo partes de textos e os manipulando de acordo com a sua conveniência.

Elegantemente, mas com muita ironia, José Cardozo diz:

“… Eu até me surpreendi, nobre senhor relator, porque na minha cabeça Hamilton falava justamente o oposto… e constatei que Vossa Excelência reproduziu de fato um trecho com fidelidade, mas não continuou o que Hamilton dizia logo após. Hamilton, no parágrafo seguinte, com a devida vênia, desmente a informação que lhe está imputada. Eu leio o que Hamilton disse logo após o parágrafo de Vossa Excelência…”

Veja no vídeo abaixo que aos 5:59 José Eduardo Cardozo começa a desconstruir Anastasia.

Além das fraudes absurdas que Anastasia vem cometendo na relatoria do processo e essas que surgem agora, é preciso muita estupidez para fazer o que ele fez.

Durante algumas das falas dos advogados, juristas e professores de Direito da defesa de Dilma, Anastasia já não estava presente, sob o pretexto de que precisava se ausentar para escrever o relatório.

É absolutamente inimaginável que o relator do processo esteja ausente durante a defesa daquele que está sendo julgado. 

Como poderá analisar e ser isento um relator, que é o acusador, que não ouviu a defesa ou boa parte dela?

Ao “fazer” o relatório com 126 páginas que recomendava a continuidade do processo de impeachment da presidenta Dilma em menos de 15 horas, o senador deixou bem claras todas as evidências de que na verdade o relatório já estava pronto antes de todo o circo que se armou no senado.

Sem entrar na questão de sua atuação como Ministro da Justiça, todos reconhecem em José Eduardo Cardozo um advogado competente e habilidoso.

Manipular a citação de três autores internacionais nessas condições já representaria para Anastasia um enorme risco de ser contestado pela defesa, mas poderia se tornar menos perigoso com a argumentação de que seria uma questão de interpretação.

Mas, ao fazer com autores nacionais vivos, o senador pôs em dúvida a sua inteligência (esqueça, não vou falar em sensibilidade porque eles não têm) e demonstrou toda a sua incompetência.

Resultado.

Os três professores de Direito escreveram um artigo em que denunciam toda a farsa do “nobre senhor relator”.

Como falei no começo deste texto, eu mal tinha acabado de escrever Eis a nossa Policia Federal: chantagem e extorsao à luz do dia e lá eu digo:

Como diz Nietzsche, “a inteligência do homem tem limites, a estupidez não”.

Está aí a prova.

Observe que Kiko Nogueira começa o seu texto falando do filme “Annie Hall”, de Woody Allen. 

O filme é fantástico e passou no Brasil com o título de “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”.

Quando li o texto de Kiko Nogueira aproveitei e postei lá no blog dele a cena à qual ele se refere, porque também já me reportei a ela em outros momentos.

Faço-o também aqui.

Quando se vê confirmar a incrível degradação moral de um homem como o senador Cristóvão Buarque, nada mais surpreende.

Não há porque esperar o mínimo de dignidade dos senadores na votação da continuidade do impeachment. Pelo nível do relator e os interesses em jogo, não é difícil imaginar qual pode ser o desfecho.

Tudo leva a crer que irão votar da mesma maneira irresponsável e vendida que fizeram os deputados, ainda que, possivelmente, com cinismo e canalhice mais dissimulados. Até pela experiência da reação que houve contra aqueles bandidos endinheirados.

Mas os senadores correm risco maior.

Pelas alterações favoráveis ao país que os cenários nacional e internacional já apresentaram e tendem a continuar apresentando e pelo maior número de deputados que de senadores, nestes as marcas do ferro da desonra serão mais difíceis de apagar.

A imprensa estrangeira já demonstra que os primeiros sinais de início de recuperação da economia no Brasil estão aparecendo, claro que em ritmo lento e suave, afinal a crise é grande e não só aqui.

E boa parcela do povo brasileiro já está percebendo o nível dos deputados e senadores e o que está de fato em jogo.

Não é à toa que a popularidade de Dilma que bateu em 8% mais do que dobrou na última pesquisa, alcançando 18%.

Se depois de tudo que está acontecendo o Supremo Tribunal Federal mantiver a mesma postura covarde que tem tido e endossar a Câmara e o Senado, aí sim teremos maiores complicações.

Só tem uma coisa; covardia somente não explica essa postura da mais alta corte do país.

O encontro  do Supremo com a desonra já se deu.

O que talvez ainda se possa esperar é que pelos menos os ministros onde a chama da dignidade não se tenha apagado por inteiro e dos quais pode surgir alguma atitude nobre com o país, e todos sabemos quais são, terão que se explicar à Nação e dizer o que de fato está acontecendo.

Se a própria consciência e história pessoal já não lhes pesam, há de pesar a reação popular de uma Nação por eles aviltada no seu direito aos mais elementares princípios da dignidade humana.

Caso contrário, a relação desses ministros com seus filhos e netos jamais será a mesma.

Vale tudo? A denúncia dos advogados citados fraudulentamente no relatório do impeachment

Anastasia farsante 2

Por Kiko Nogueira, no Diário do Centro do Mundo

“Annie Hall”, o melhor filme de Woody Allen, tem uma cena particularmente impagável, entre tantas. Alvy Singer, o alter ego do cineasta, está numa fila de cinema com a namorada.

Um sujeito começa a falar com empáfia e superioridade de Marshall McLuhan, velho guru da teoria da comunicação. Allen não aguenta e pede que ele pare com as bobagens.

O homem rebate alegando que dá aula numa universidade sobre tv, mídia e cultura, é especialista em McLuhan, e conhece tudo sobre a figura. Allen resolve, então, tirar o próprio Marshall McLuhan de trás de um pôster para confrontar o fanfarrão: “Eu ouvi o que você estava dizendo. Você não conhece nada do meu trabalho. Entendeu tudo errado. O fato de você dar um curso de qualquer coisa é  inacreditável”.

De certo modo, foi o que três advogados fizeram com Antonio Anastasia. Festejado por luminares como Ronaldo “uma voz em busca de um cérebro” Caiado e Aloysio Nunes como um Einstein do direito, um Ruy Barbosa reeditado, Anastasia tomou uma reprimenda pública de autores mencionados num ponto chave de seu relatório do impeachment.

Lenio Luiz Streck, Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Alexandre Bahia aparecem na peça como se reforçando o ponto do relator. Anastasia usou-os para defender o contrário do que eles acreditam com relação ao artigo 85 da Constituição, que versa sobre os crimes de responsabilidade.

Eles escreveram um artigo expondo a fraude num site. “O senador Anastasia nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos”, escrevem. É uma cereja a mais no bolo de uma farsa jurídica que se avoluma de maneira impressionante.

Anastasia já não tinha condições morais para ocupar a relatoria da comissão especial do impeachment por razões óbvias: ser do PSDB e ter pedalado loucamente. No entanto, o baile seguiu.

Depois das palmadas de Streck, Cattoni e Bahia, ele merecia, no mínimo, ser obrigado a se ouvir, em seu tom agudo monocórdio, recitando o texto dos juristas. O golpe fica nu, mas segue adiante. Pobre Brasil.

A nota crítica:

A citação feita no Relatório Anastasia[1] do texto dos comentários ao art. 85 da Constituição da República que escrevemos[2] não considera de modo adequado a integridade do texto, nem do trecho referido. Para nós, o fato do rol do art. 85 ser exemplificativo reforça ainda mais a exigência prevista no parágrafo único do mesmo artigo da Constituição de que a lei especial e regulamentar tipifique e defina os crimes de forma completa, afastando, portanto, “tipos abertos”, bem como a interpretação extensiva ou por analogia – o que não é possível por se tratar de crime. Indicamos, portanto, a leitura do trecho dos Comentários à Constituição do Brasil:

“Para os crimes de responsabilidade valem os dispositivos constitucionais e sua regulamentação através da Lei 1.079/50.” E, logo em seguida, “O rol previsto no art. 85 é meramente exemplificativo, constando sua definição completa naquela citada norma infraconstitucional”, ou seja, a Lei 1.079/50. Este é o último parágrafo do texto dos comentários ao artigo 85,inComentários à Constituição do Brasil, p. 1287. Depois de ter explicado, portanto, que a Lei 1.079/50 tipifica os crimes.

O Senador Anastasia, assim, nos cita para tirar uma conclusão com a qual não concordamos, pois o fato de o elenco do art. 85 ser exemplificativo não significa que esteja afastada a exigência de previsão legal taxativa dos crimes de responsabilidade, conforme o parágrafo do mesmo artigo.

Como na Carta aberta a Anastasia que foi encaminhada por professores, estudantes e servidores da Faculdade de Direito da UFMG:

2) A CR/88 dispõe em seu art. 85, parágrafo único, que uma lei especial definirá os crimes de responsabilidade e estabelecerá as normas de processo e julgamento do impeachment. Esta lei, como já afirmado pelo STF no julgamento do caso Collor em sucessivos mandados de segurança (MS 21.564, MS 21.623 e MS 21.68) e agora na ADPF 378 é a Lei 1079/50. Entendemos que em consonância com o devido processo constitucional as hipóteses de crime elencadas pela lei do impeachment devem ser atendidas taxativamente, não cabendo, portanto, interpretações extensivas ou analógicas em respeito às garantias do próprio sistema presidencialista, e do ordenamento jurídico como um todo, em que restrições de direitos devem ser interpretadas de forma taxativa.”[3]

Para a Constituição da República, justamente porque o rol é exemplificativo que a lei especial regulamentará tipificando os crimes, por uma questão de segurança jurídica! Ou seja, cabe à lei especial definir por completo. Como diria Gomes Canotilho, estamos diante de uma vinculação expressa do legislador à Constituição. Sabemos, pois, quais são os crimes de responsabilidade e qual o procedimento de impeachment porque a Constituição estabeleceu os parâmetros no art. 85, incisos e parágrafo, e no art. 86 (também art. 51, I, e art. 52, I), e a Lei 1.079/50 os regulamentou, prevendo, taxativamente e definindo de forma completa, os tipos penais.

Não cabe assim interpretação extensiva e analógica dos crimes completamente definidos pela lei especial prevista no parágrafo do art. 85. O preceito fundamental em questão é mesmo o princípio da reserva legal. Somos, pois, daqueles que concordam com Marcelo Neves[4] e Alexandre Morais da Rosa[5] no sentido de que crime de responsabilidade é crime e se submete à reserva legal, em lei específica, no caso, a lei 1.079/50, no que foi recepcionada[6]. O fato de o rol do art. 85 não ser numerus clausus não afasta, muito antes pelo contrário, a exigência constitucional, prevista no parágrafo único do art. 85, de que a lei especial taxativamente o faça. Ou, como dissemos no texto dos Comentários, defina completamente os crimes. Questão mesmo de segurança jurídica, não há como se falar em “tipos abertos”. Ou seja, o Senador Anastasia termina por tirar conclusões com as que jamais concordaremos.

A estratégia do Relatório Anastasia é a de se admitir que não há a tipificação taxativa dos crimes de responsabilidade, mas que isso “não é um problema”, pois que “o tipo seria aberto” e, então, poder-se-ia a ele aderir legislações e capitulações que lhe são estranhas, como a responsabilidade fiscal ou qualquer outra. Ora, se há previsão de hipóteses de “crime de responsabilidade” e “crime comum” de Presidente da República, a serem apreciados em processos diferentes, é justamente porque há crimes, ainda que diferentes.

Cabe lembrar, ademais, que, embora estejamos numa República democrática em que, com certeza, o Presidente é responsável, o sistema de governo constitucionalmente adotado é o presidencialismo e não o parlamentarismo. Logo, no Brasil, o Presidente da República só pode ser impedido quando estiver configurado crime, segundo a Constituição e nos estritos termos da legislação a que a própria Constituição se refere.

Nesse sentido, cabe dizer que é perceptível desde o início qual seria a estratégia do relatório. A estratégia de pretender descaracterizar o caráter de crime do crime de responsabilidade para defender a possibilidade de afastar a exigência jurídica de taxatividade dos crimes previstos em lei especial, abrindo espaço para a interpretação extensiva e por analogia, defender uma responsabilidade objetiva, sem dolo, e por atos que a Presidente não cometeu, como bem mostrou Alexandre Morais da Rosa[7], mesmo no caso das chamadas “pedaladas fiscais” (sic) referentes ao Plano Safra, fato atípico posto que não há de se confundir o atraso no repasse dos valores referentes a subvenções sociais com operações de crédito e onde sequer há atos cometidos pela Presidente da República, como bem mostrou, mais uma vez, Ricardo Lodi[8].

O que se faz, ao fim e ao cabo, revela, justamente o que nós, e os demais autores aqui citados, temos dito desde o início: trata-se de uma flagrante inconstitucionalidade que sacrifica o caráter jurídico-político, portanto, constitucional, do instituto do impeachment para reduzi-lo apenas à vontade de uma maioria tardiamente formada.

Obs. Quem desejar, pode ler o texto original no Empório do Direito.