Por Ronaldo Souza
Desde o famoso Estudo de Washington, Ingle estabeleceu a importância da obturação no tratamento endodôntico.
Segundo ele a maioria dos insucessos do tratamento endodôntico era devida a obturações malfeitas. As falhas da obturação e a consequente infiltração de fluidos teciduais periapicais seriam a causa das lesões periapicais.
A partir daí, espalhou-se por todo o mundo o conceito de vedamento hermético, que passou a ser considerado fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico e, portanto, o grande objetivo do endodontista.
Consegui-lo era indispensável para o sucesso em Endodontia.
Adotou-se essa “verdade” científica há cerca de 60 anos.
As “evidências” pareciam claras.
Profissionais do mundo inteiro acreditaram nisso e buscaram a qualquer custo o vedamento hermético nas suas obturações.
Quanto se discutiu sobre o travamento perfeito do cone principal de guta percha!
Quantos dedicaram boa parte da sua formação acadêmica à obturação!
Quantas monografias, dissertações, teses e artigos têm sido feitos/publicados sobre o tema!
Quantas monografias, dissertações, teses e artigos têm sido feitos/publicados sobre cimentos obturadores!
Discussões infindas sobre métodos de avaliação da infiltração apical das obturações foram feitas até o Journal of Endodontics “condenar” em editorial a infiltração apical de corantes e métodos similares como formas de avaliação da qualidade da obturação.
E o mundo se curvou a essa decisão.
Condenaram os métodos de avaliação da qualidade da obturação e partiram em busca de novas e mais sofisticadas metodologias.
A concepção, porém, seguia intocada.
Quem ousaria discordar do que determinava o Journal of Endodontics, o editor da vida no previsível mundo da Endodontia?
Entretanto, ainda que não tivessem sido percebidas, duas questões se impunham.
Onde estavam as evidências que comprovavam a existência de vedamento hermético?
E, mais importante, onde estavam as evidências que confirmavam a imprescindibilidade do vedamento hermético?
Apesar da insistência, não havia.
Não poderia haver.
E não há.
Se houvesse seria a decretação da falência da Endodontia como especialidade da área da saúde.
Mas, se não há, por que insistir?
Não é estranho que após tantos anos pesquisando esse tema sem nenhuma comprovação da obturação como fator determinante do sucesso ainda se insista na mesma ideia?
Apesar de tudo isso, sempre houve algo muito positivo.
Na grande maioria das vezes o debate foi sério.
Discutia-se realmente um tema importante da Endodontia.
Acreditar de fato na ideia torna, no mínimo, a discussão um pouco mais séria.
E a comemorar o fato de que, apesar das dificuldades enfrentadas por quem ousou contestar o paradigma da obturação, já se percebe um ou outro falando em repensar o seu papel.
Alguns artigos, ainda que poucos, há algum tempo já começaram a redefinir esse papel.
Desde o trabalho de Sabeti e colaboradores – Sabeti MA, Nekofar M, Motahhary P, Ghandi M, Simon JH. Healing of apical periodontitis after endodontic treatment with and without obturation in dogs. J Endod. 2006 Jul;32(7):628-33 – já se vão 9 anos.
Veja a que conclusão chegaram os autores:
The noteworthy finding of this study was that there was no difference in healing of apical periodontitis between the instrumented and obturated and instrumented and nonobturated root canal system…
O achado importante deste estudo foi que não houve diferença na cura das lesões periapicais entre os canais instrumentados e obturados e os canais instrumentados e não obturados…
No entanto, nos tempos atuais o tema adquiriu novos contornos.
Entre outras coisas, percebe-se um movimento que em boa parte visa alcançar os jovens que estão saindo das faculdades.
Inexperientes e com poucas armas para resistir ao assédio, deixam-se encantar com as promessas.
Somente alguns alunos percebem.
Você já viu a quantidade de vídeos falando de Endodontia na internet que prometem o Céu e a Terra?
Tecnologia é o pano de fundo, literalmente.
A tecnologia que tantos avanços trouxe para a Endodontia e pôs nas mãos do endodontista ferramentas que melhoraram bastante a qualidade do tratamento endodôntico ali se transforma em peça de marketing.
Não se vê ‘Endodontia’, mas ‘tecnologia’.
O “professor” não fala de Endodontia, mas como conseguiu fazer aquilo que vai mostrar.
Ele, o “professor”, nunca está sozinho. Está sempre ladeado por tecnologia.
Ao lado está o microscópio que faz ver o mundo.
O localizador foraminal que dá a precisão que não existe (o “professor” acha que existe).
Tudo é feito rapidinho, não há mais porque perder tempo.
O lema passou a ser: “É hoje e hoje mesmo termina”.
As radiografias A, B, C e D da figura lá em cima me foram dadas. A radiografia E peguei em um dos poucos momentos em que dei uma “fuçada” na internet.
Como se observa, mostram extravasamentos consideráveis de material obturador.
Inicialmente conhecidos como “Puff”, certamente uma expressão sem charme, importou-se outra:
Surplus.
Tido por muitos como “tema moderno”, reflete mais do que isso e merece ser discutido.
Antes, porém, dois breves comentários.
Não há nenhuma pretensão de agredir quem quer que seja.
Assim, profissionais sérios não se sentirão atingidos por algumas das considerações que serão feitas.
É discussão de ideias, concepções.
Simplesmente falo de Endodontia e não deixo de lado a ênfase necessária quando cabe.
O outro aspecto é que, por razões óbvias, excluirei deste texto comentários sobre o extravasamento acidental de material obturador.
Vamos lá.
A proposição de obturações com surplus é absurda.
Reflete conceitos equivocados e defasados e desconhecimento.
O que representa o material obturador nos tecidos periapicais?
Um corpo estranho.
Isso deveria ser suficiente para se entender que a presença de corpo estranho representa um fator de agressão aos tecidos, onde quer que se situem, algo que qualquer aluno da área de saúde aprende nos primeiros semestres do seu curso.
Tendo como respaldo a dedução de Ingle no Estudo de Washington, preconiza-se que o material obturador deve ser extravasado para os tecidos periapicais como comprovação de que assim a obturação estaria bem feita.
Se isso fosse de fato comprovação de qualidade e garantia de sucesso, como alguns ainda imaginam, possivelmente valeria a pena assumir o preço pelos inconvenientes do extravasamento de material obturador para os tecidos periapicais.
Mas, definitivamente, não é.
Não vamos perder tempo descrevendo as desvantagens desse procedimento.
Mas vamos conhecer o caso abaixo, claro suprimindo detalhes que poderiam identificar o colega que o fez.
Vinda de outro estado, a paciente relatou ao colega que a atendeu em Salvador (membro da minha equipe) duas coisas que chamaram a atenção.
A primeira foi sobre as dores intensas e incessantes que ela estava sentindo há mais de seis meses, apesar de durante todo esse tempo estar sob rodízio medicamentoso à base de anti-inflamatórios e analgésicos.
A segunda foi a preocupação do colega, ao saber que ela vinha para Salvador, em frisar várias vezes que assim que chegasse ela tinha que procurar um endodontista muito amigo dele (faziam parte do mesmo grupo), segundo ele, o único que teria competência para ajuda-la.
A paciente trouxe a radiografia vista em A.
Quando durante o exame o colega que a atendia fez a radiografia B entendeu o porque dos dois relatos feitos pela paciente.
As fortes e intermináveis dores eram devidas ao fato de que o material obturador extravasado, o corpo estranho, o surplus estava no canal mandibular (setas em B).
E a insistência do colega para que ela fosse ao amigo de Salvador, segundo ele o único capaz de resolver o problema, deve encontrar explicação no fato de que o surplus agressor de nervo alveolar inferior não ganharia o mundo; ficaria só entre eles.
Só eles e o nervo alveolar inferior da paciente tomariam conhecimento do surplus.
Poderia até ser mais um caso clínico exibido em jornadas e congressos como comprovação de excelência em Endodontia.
Claro, sem detalhes inconvenientes.
Somente aí a paciente tomou conhecimento do que se tratava e qual era a razão das suas fortes e intermináveis dores.
Ocorrências semelhantes são mais comuns do que se imagina e teremos que ter muito cuidado daqui por diante. A quantidade de processos judiciais contra profissionais é algo crescente e preocupante nesse momento.
Além de explicar à paciente o que tinha acontecido e dar algumas orientações, coube ao colega dizer que não havia como prever quando as dores teriam fim.
À paciente restou continuar fazendo uso dos anti-inflamatórios e analgésicos.
A indicação de obturações com surplus contém um empirismo injustificável.
Obs. Este texto não termina aqui. Aguarde a sua continuação.