A Medicina é uma profissão fantástica. É extremamente gratificante cuidar da saúde física e mental do ser humano.
Cuidar da saúde física e mental do ser humano. Dá para imaginar o tamanho da responsabilidade que isso representa? Seria possível um profissional ter todos os conhecimentos necessários para algo dessa grandeza? Humanamente impossível.
Daí surgem as diversas especialidades da Medicina. O conceito de um único organismo, mas a necessidade de “dividi-lo” em partes, para tornar possível o seu conhecimento. Cardiologia, Pneumologia, Ortopedia, Odontologia, Oftalmologia, Dermatologia e tantas outras especialidades, todas elas com um único objetivo; a saúde do homem.
Os primeiros cursos de Odontologia no Brasil surgiram como anexos das Faculdades de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro. Assim também eram os cursos de Farmácia e Obstetrícia. Em São Paulo, o ensino de Odontologia já surgiu de forma distinta da Faculdade de Medicina e chegou a existir uma Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetrícia. O modelo adotado no Brasil é o das escolas americanas, isto é, a “separação” da Odontologia das outras especialidades. Se essa separação foi acertada ou não, não cabe aqui discutir. Mas a discussão de pelo menos um dos seus aspectos é inevitável.
Parece que para os profissionais de ambas, a transformação da Odontologia e da Medicina em profissões distintas gerou a idéia de que, de fato, são distintas. A começar pelo fato de que os profissionais que nelas atuam não são colegas. Se existem, quantos médicos consideram seus colegas os dentistas, e vice-versa? Muito pelo contrário, há aí um sentimento de rixa (na verdade há um outro menor, mas… deixa pra lá), expresso de várias maneiras em vários momentos. Mas esse é um tema que pede uma outra hora para a sua discussão e é possível que eu volte a ele mais adiante. A distinção sobre a qual pretendo falar é outra.
Talvez os mais jovens não saibam, mas até há pouco tempo os representantes comerciais das indústrias farmacêuticas que visitavam os dentistas falavam de antibióticos, antiinflamatórios e analgésicos para dentista. Percebeu? Específicos para dentista. O organismo que o médico tratava exigia um antibiótico, o que o dentista tratava outro. “Existiam” dois organismos, um para o médico outro para o dentista. Se observarmos bem, é possível que essa concepção ainda não tenha sido inteiramente eliminada.
O organismo é um só. A compreensão desse aspecto não permite pensar que ele se mobiliza e reage diferentemente na Odontologia e na Medicina. As células que compõem os tecidos e órgãos são as mesmas, onde quer que eles estejam situados. Até onde o conhecimento científico permitiu chegar, não há como o sistema imune se comportar de maneiras diferentes pelo fato de estar atuando em uma patologia da Odontologia ou da Medicina. Isso não existe. Assim, onde quer que estejam ocorrendo, a reação inflamatória e o processo de reparo obedecem às mesmas leis do organismo.
Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que é removendo a causa que desaparece a patologia, a doença. Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que é o ato cirúrgico de remoção que elimina a causa. Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que, uma vez removida a causa, o organismo promove a cura. Na Endodontia, uma especialidade da Medicina, parece que querem que seja diferente.
O preparo do canal é a fase mais importante do tratamento endodôntico, pode ter absoluta certeza disso. Na Endodontia, a causa é o canal infectado, a patologia é a lesão periapical (exsudato persistente, fístula). Na Endodontia, quem remove a causa é o preparo, quem promove a cura é o organismo. Não sei por que ainda hoje queremos ir na contra-mão. Não sei por que ainda hoje queremos, e brigamos por isso, demonstrar que é a obturação que permite a cura. Nunca foi.
Preparo do canal significa acesso, instrumentação, irrigação e medicação intracanal (se e quando necessária). Todos esses procedimentos constituem uma única etapa, que visa a eliminação da causa. Que não se argumente com a impossibilidade de eliminar a infecção em Endodontia. Isso parece ser fato, porém pobre como argumento. Mais pobre do que ele é o que é colocado logo em seguida, e que parece a todos que se justifica: “Ao vedar hermeticamente, a obturação promove o enclausuramento das bactérias que não foram eliminadas. Isoladas entre a obturação hermética e o cemento, elas morrem”. Quem provou isso? Não se pretende uma Ciência que só se justifica com provas? Onde estão os trabalhos que provam a existência do vedamento hermético?
Você já observou quantas vezes uma antibioticoterapia é modificada no tratamento de pacientes em Medicina? Por que? As razões são diversas, mas há uma de fácil compreensão; com essa ou aquela medicação não se conseguiu a eliminação do processo infeccioso. Mas observe que o medicamento está sempre voltado para esse objetivo; eliminação da causa. Quando a medicação funciona e o tratamento controla a infecção, quem entra em cena? O sistema imune. Na verdade ele nunca esteve fora de cena, pelo contrário. No entanto, agora existem condições mais favoráveis para que ele possa fazer o seu papel; promover a cura. Quem criou essas condições? O tratamento, que exerceu controle de infecção.
Será difícil imaginar algo semelhante na Endodontia ? Por que alguns tratamentos podem falhar? Porque as medidas tomadas para controle de infecção não foram suficientes para este ou aquele caso. Em outras palavras, o tratamento endodôntico não foi suficientemente efetivo. Aí você poderá ter como explicação a permanência de microorganismos que não foram alcançados pelo preparo (alojados em locais inacessíveis a ele), microorganismos com maiores recursos de sobrevivência.
O que a literatura propõe além do enclausuramento pelo vedamento hermético? A utilização de cimentos obturadores com atividade antimicrobiana. Olha só que coisa. Perceba a inversão absurda que se faz. Atribuir ao cimento obturador o papel de matar microorganismos.
Vamos pensar juntos? Dispomos hoje de excelentes técnicas de instrumentação, você sabe disso. Você usou uma delas. Além disso, irrigou com solução com reconhecida ação antimicrobiana, solvente de matéria orgânica, em associação com solução de comprovada eficácia de ação sobre matéria inorgânica, e complementou com medicação intracanal, também com comprovada ação antimicrobiana. Várias ações que se somam e juntas ganham grande potencial antimicrobiano. Você realmente acha que os microorganismos que escaparam desse tratamento morrerão pela ação de um cimento obturador? Quais são as chances de isso acontecer? Já pensou que para isso o cimento obturador teria que ter uma ação antimicrobiana superior a todos aqueles procedimentos do preparo juntos? Você conhece algum que tenha? Qual seria a toxicidade desse cimento? Tendo em vista que alguns acreditam que cimentos obturadores com hidróxido de cálcio fariam esse papel com menor toxicidade, esse hidróxido de cálcio contido no cimento estaria em condições, concentração e quantidade mais adequadas e teria mais tempo de ação do que aquele da medicação intracanal?
Parece ser consenso que não se consegue a eliminação da infecção com o tratamento endodôntico. Também não há comprovação de que o reparo só se dá nessas condições. Por essa razão, hoje prefere-se dizer controle de infecção. Quando se consegue, ocorre a cura. Não parece muito difícil imaginar que as condições para isso são atingidas através do preparo e não da obturação.
Nenhuma especialidade da Medicina tem qualquer tipo de dúvida de que é removendo a causa que desaparece a patologia. É simples. Todos os procedimentos de remoção do conteúdo infectado do canal estão inseridos na fase do preparo do canal. Na Medicina, após o controle de infecção, a pele e as mucosas se reconstituem e “selam” o organismo contra a reinfecção. A reconstituição da pele e das mucosas é a síntese da demonstração de reparo que o organismo pode dar. Na Endodontia, após o controle de infecção que o preparo do canal proporciona, não há como o organismo formar novo esmalte e nova dentina. A obturação do canal e a restauração coronária selam o canal contra a reinfecção. Esse é o papel da obturação: selar.
Desde 1987 trabalho com essa linha de raciocínio e somente a partir de 1992 comecei a mostra-la nos cursos que tenho ministrado em algumas cidades do Brasil. Como era de se esperar, ocorreram as mais diversas reações, algumas das quais violentas. É natural. A História mostra que isso sempre acontece todas as vezes em que surge um novo pensamento, uma nova concepção. Dou um exemplo: a descoberta por Nicolau Copérnico, levada adiante por Galileu Galilei, de que não era a Terra e sim o Sol o centro do Universo, um dos grandes momentos da Ciência. Por ter ido contra o pensamento (errôneo) da época, Galileu foi condenado à prisão e forçado a admitir publicamente que estava errado. Somente quatro séculos depois (1997) ele foi perdoado oficialmente pela Igreja Católica.
Dizer que há 21 anos trabalho com essa linha de raciocínio não significa não dar importância à obturação. Todos os nossos alunos, em todos os níveis, graduação, aperfeiçoamento e especialização, sem exceção, são nossas testemunhas de que em vários momentos orientamos refazer a obturação por não estar bem feita. O fato de o reparo não depender da obturação não significa que ela pode ser feita de forma negligente ou, o que seria pior, não ser feita. O reparo não depende dela, mas a sua manutenção sim. A obturação do canal e a restauração coronária fazem o papel da pele, “evitar” a reinfecção.
Portanto, o argumento da negligência com a obturação ou, pior ainda, da sua supressão, que já foi utilizado contra mim, só encontra explicação na incompreensão do que tenho dito ou na má fé. Além do que já publiquei (pelo menos alguns artigos podem ser vistos na seção ARTIGOS PUBLICADOS desse site), inclusive o meu livro, trabalhos importantes de outros autores começam a surgir seguindo essa mesma linha de raciocínio. Veja, por exemplo, “Healing of Apical Periodontitis After Endodontic Treatment with and without Obturation in Dogs” (Journal of Endodontics, julho de 2006, p. 628-633) clique aqui. Após acompanhamento histopatológico de canais tratados, os autores dizem que “o achado digno de registro do estudo é que não houve nenhuma diferença na cura de lesões periapicais entre canais obturados e não obturados”.
Atribuir o reparo à obturação do canal foi um dos grandes equívocos cometidos na Endodontia. O reparo ocorre graças ao preparo do canal. É a Endodontia em consonância com todas as outras especialidades da Medicina.