Entender para fazer bem

Entre os temas que sempre abordo com os alunos de graduação, está uma conversa que pretende chamar atenção deles para a ligação das disciplinas básicas com a clínica (apesar de achar que se eu falar “link” e não ligação eles entenderão melhor, recuso-me para não contribuir com o desrespeito e assassinato do nosso Português. Nessa tentativa desesperada estou bem acompanhado, como por exemplo, por gente do nível de Ariano Suassuna).

– Se eu pegar uma turma de medicina equivalente à de vocês (6o semestre) quem vocês acham que fará melhor uma ligação das disciplinas básicas com a clínica, vocês ou eles? Eles nunca pararam para pensar sobre isso, mas já sabem a resposta.

O que faz um médico diante de uma ferida contaminada? Limpa (remove a infecção) e a protege contra a invasão de microorganismos, até que o reparo se dê com o fechamento da ferida, a cicatrização da pele. Ele sabe que ao limpar a ferida, ao remover a infecção, o reparo está garantido. Para evitar nova infecção, ele sela e protege a ferida até que a pele se reconstitua e aí assegure o reparo em “definitivo”.

Vamos para a Odontologia? Qual é a terapia indicada para um dente com tecido cariado? A restauração da porção perdida com o processo de cárie? Não. A terapia indicada é o preparo cavitário (momento em que se remove a cárie, a infecção) e a restauração do dente, para que ele recupere as condições funcionais e estéticas. A restauração teria basicamente dois objetivos; funcional e estético. Mas, não é só isso; ela tem um outro objetivo, nobre, que é o de selar a cavidade e assim “evitar” que novos microorganismos tenham acesso às estruturas dentais, o complexo dentina/polpa.

Já foi demonstrado que para existir cárie há necessidade da interação de três fatores; hospedeiro – dieta – microorganismos. Considerando-se que o homem (hospedeiro) precisa da dieta para sobreviver, resta-nos pensar sobre os microorganismos.

Existem animais de laboratório que são livres de microorganismos, os chamados germ-free. Vamos imaginar a seguinte situação; a existência do homem germ-free; ele não teria microorganismos na sua cavidade oral. Imagine que conseguíssemos “colocar” alguns microorganismos só em um determinado dente, um dente anterior, e tivéssemos induzido o surgimento de cárie nele. Agora existe cárie em um dente.

Você vai tratar o dente em questão. Você remove a cárie. Esqueça a estética. Você acha que precisa restaurar para evitar que microorganismos invadam o complexo dentina/polpa? Se você lembrar que este paciente é germ-free, e que portanto não há microorganismos, você precisa da restauração para “proteger” dentina e polpa? Não. Não há quem os invada. Assim, após a eliminação da infecção, se não houvesse a preocupação com a proteção do complexo dentino/pulpar, estética e função, esse dente não precisaria ser restaurado. Calma, não se precipite. É lógico que todos os dentes devem ser restaurados. Nós estamos conversando sobre uma situação hipotética de um paciente germ-free.

Observe que não cabe à restauração eliminar as bactérias. Esse papel cabe ao preparo cavitário. À restauração cabe, após a eliminação do agente causal, selar a cavidade e impedir a chegada de novos microorganismos. As eventuais alterações pulpares deixarão de existir graças ao fato de que a causa, a cárie, foi removida. A permanência desse quadro, e a conseqüente manutenção do reparo a longo prazo, terá lugar pelo selamento da cavidade. Obtém-se o reparo com o preparo cavitário; mantém-se o reparo pelo selamento cavitário.

Assim ocorre na Endodontia. O preparo do canal remove a causa e com isso permite ao organismo promover o reparo; a obturação sela o canal e permite a manutenção do reparo a longo prazo. Obtém-se o reparo com o preparo do canal; mantém-se o reparo pelo selamento do canal. Este é o objetivo da obturação.

É reconhecida a dificuldade de eliminação dos microorganismos pelo preparo cavitário na dentística. Particularmente em cavidades mais profundas, permaneceriam nos túbulos algumas bactérias, haja vista que a sua remoção total poderia levar à exposição pulpar, com as suas eventuais conseqüências (não cabe neste momento comentá-las, fazer juízo de valor; quem sabe venhamos a fazê-lo futuramente). Tendo em vista a possibilidade de permanência desses microorganismos remanescentes, apesar de polêmico, propõe-se o uso de uma substância com potencial antimicrobiano, geralmente hidróxido de cálcio, e o selamento da cavidade pela restauração. De uma forma bem sintetizada, pretende-se com o primeiro uma ação sobre os eventuais microorganismos residuais e com o segundo evitar a chegada dos que naturalmente habitam a cavidade oral. O sucesso desses procedimentos garantirá à polpa a sua sobrevivência em estado de saúde.

É por demais reconhecida a dificuldade de eliminação dos microorganismos do sistema de canais radiculares pelo preparo do canal. Alguns deverão permanecer. Tendo em vista a possibilidade de permanência desses microorganismos remanescentes, propõe-se o uso de uma substância com potencial antimicrobiano, geralmente o hidróxido de cálcio, e depois o selamento da cavidade pulpar pela obturação do canal. De uma forma bem sintetizada, pretende-se com o primeiro uma ação sobre os eventuais microorganismos residuais e com o segundo evitar a chegada dos que naturalmente habitam a cavidade oral. O sucesso desses procedimentos garantirá aos tecidos periradiculares a sua sobrevivência em estado de saúde.

É tão simples assim? É sim. Já passou da hora de se continuar imaginando que deu certo porque vedou hermeticamente.