De médico e louco todos temos um pouco. No país que ainda se acha o país do futebol, de técnico temos tudo. Opiniões não faltam. Não faltam entendidos em música, cinema, política… A ciência não escapa. Parece que o que mais há hoje em dia são pesquisadores e/ou profundos conhecedores de pesquisas.
Ao mesmo tempo em que reclamamos da escassez de bons periódicos, muitas vezes atribuímos importância exagerada a alguns. Todos sabemos que muitos artigos que nada acrescentam são publicados em periódicos importantes, o que mostra que os seus critérios de avaliação de trabalhos estão longe da perfeição. Aliás, são de uma clareza enorme as falhas nesse sentido. Entretanto, segundo alguns professores, alguns artigos não têm validade, ou esta é infinitamente menor, pelo fato de que são publicados em revistas “menores”. Julga-se onde foi e não o que foi publicado. Muito sensato.
Neste momento, há uma tendência para que isso se agrave. A submissão on line facilitou bastante o encaminhamento de artigos para as revistas e certamente aquelas de maior impacto tiveram grande crescimento na quantidade de artigos que lhes são enviados. Até aí nada demais. Só que o trabalho dos revisores aumenta consideravelmente e torna muito mais difícil a tarefa de dividir-se entre as várias atividades de cada um deles e a função de revisores, tarefa difícil e que exige muito tempo.
Larz Spangberg, sem dúvida, era um dos editores mais preocupados com esse problema. A extinção da seção de Endodontia do Triple O e a “aposentadoria” do Prof. Spangberg agravam a questão. Ele sempre mostrou a sua preocupação com os rumos que tomou o ensino da endodontia e deixou isso bem claro em alguns editoriais, um dos quais (Are we doing enough?) quando se despediu da condição de editor da seção de endodontia do Triple O.
Observe a quantidade de publicações sobre instrumentos, motores para instrumentação do canal, localizadores foraminais, cimentos obturadores. Quantos artigos estão sendo publicados e quantas discussões travadas em cima de instrumentos? Instrumento único ou vários? Quantos? Hibridização?
Qual o evento de endodontia que hoje não tem entre os seus temas falar de instrumentos como Reciproc e Wave One? Quantos professores estão difundindo a ideia do instrumento único? Que bom! Ótimo! Quantas evidências científicas existem sobre esses instrumentos que respaldem as suas falas? Ou nessas horas as evidências não são tão fundamentais assim? Estão falando apoiados em evidências ou no entusiasmo/experiência pessoal?
Discussão importante? Sem dúvida. Mas, mais uma vez, sutil e devidamente estimuladas, discussões atreladas à necessidade de se vender algo, não de se pensar algo. Daí surgirão mais protocolos de como usar o(s) instrumento(s), que técnica utilizar. Mais protocolos de como fazer. Infelizmente não existem protocolos de como pensar. Vender é fácil, pensar não.
Contra os instrumentos? Não. Contra o que está por trás. Quantos dadores de cursos estarão seduzindo os seus alunos com instrumentos gentilmente cedidos pela indústria? Onde fica a questão educacional, tão falada nos dias de hoje? É pra falar serio?
Quanto se investiu, quanto se lucrou e ainda se lucra com materiais/técnicas de obturação, que seriam os fatores determinantes do sucesso!!! Graças a que? Ao Estudo de Washington. Percebeu-se, com grande atraso, o equívoco que foi esse “estudo”. Hoje, todos o criticam. Mas, por que ainda se briga por cimento obturador? Não se percebe aí o grande contrassenso?
Uma vez, conversando com um grande amigo e professor ele disse algo bastante interessante, que transcrevo quase que literalmente: “nós podemos quase que categorizar dois tipos de pesquisadores; os que ‘criam’ alguma coisa (aqueles que bolam uma nova concepção, uma nova forma de pensar) e os que investigam as teorias criadas”. Ele se colocou na segunda categoria (segunda na ordem em que foi apresentada não em importância).
Aí chega o momento dos revisores e editores. Uma nova concepção, uma nova ideia, pode não ser entendida. Discordo, não há evidências. O trabalho não é aceito para publicação.
Desde garoto ouço falar do desinteresse de parte da classe política pela educação do povo. Qual a razão? Onde não há conhecimento não há questionamento, só aceitação. Todos criticamos, e devemos criticar, esses políticos.
Que interesse tem sido de fato mostrado pelo real aprendizado dos nossos alunos? Como reclamar da falta de discernimento deles se nós somos os seus professores? É mais fácil faze-los comprar do que pensar. Somos, portanto, que nem aquela parcela da classe política que nega a educação. A ignorância elimina qualquer possibilidade de questionamento. E viva o professor.
Estamos de volta a pouquíssimos anos atrás, quando professores renomados surfaram nas ondas do ataque ácido sobre polpa? Sem fazer juízo de valor, qual era a dif
iculdade de alguns professores de dentística? Mostrar aos seus alunos que “não era bem assim”. Tarefa difícil, pois todos já estavam seduzidos pelo canto da sereia*. Evidências científicas “comprovavam” a correção da técnica. Foram necessárias muitas necroses pulpares para se perceber que realmente não era bem assim.
Quando se fala em “principais órgãos de comunicação” não se fala necessariamente em qualidade de informação, mas muito mais no seu alcance, na sua disseminação. Nesse sentido, apesar de boa parte da população não perceber, atualmente os principais órgãos de comunicação são os que mais pecam em qualidade. A disseminação das notícias desses órgãos, mesmo que bem menor do que já foi, ainda é grande. Infelizmente, nem todos percebem o baixo nível da sua qualidade, onde as informações são manipuladas e passadas de acordo com os interesses da mídia. Grupos com grande alcance midiático estão cada vez mais presentes nos diversos segmentos da sociedade. O meio endodôntico é apenas mais um deles. Hoje, o canto da sereia torna ingrata a tarefa do professor de endodontia: mostrar aos seus alunos que não é bem assim.
Também “idolatrei” os homens de imprensa, e aqui cabem todos os que lidam com a informação, desde os que publicam seus artigos aos editores/revisores das revistas. Hoje, conheço um pouco mais. É que todos os acontecimentos e experiências da vida acompanham o homem até o final dos seus dias e lhe ensinam a ver melhor as coisas. Endodontia apoiada em evidências (e bom senso) e a apoiada na autoridade. O que mudou? Nada. Só os nomes dos que hoje se consideram autoridade.
Quando o homem fica entre a má vontade e a má fé está perdido.
* Descrito por Homero em seu poema épico “Odisséia”. Ninguém podia escapar com vida após ouvir o mavioso canto das sereias. Elas exerciam um poder irresistível sobre seus ouvintes, que, inebriados, se atiravam nas águas e nunca mais voltavam.