Após três consultas em que não conseguia controlar a dor de uma paciente, provocada por um incisivo central superior direito (dezembro de 1986), em janeiro de 1987 fiz a limpeza do forame e controlei o caso. Era o primeiro tratamento endodôntico com limpeza do forame. Um caso aparentemente absolutamente comum (veja aqui). A partir daí, passei a realizar esse procedimento em todos os casos de necrose pulpar, sem ou com lesão periapical.
Em 1992, após três meses de tentativa fazendo limpeza do forame e usando hidróxido de cálcio, a fístula de um 1º molar inferior direito persistia. Mudei a forma de fazer a limpeza do forame e controlei o caso (veja aqui). A partir daí, tornou-se procedimento de rotina fazer limpeza ativa do forame (como passei a chamar) em todos os casos que não respondiam à terapia com a limpeza (passiva) do forame.
Já se vão, portanto, vinte e cinco anos realizando a limpeza do canal cementário, com vários casos de anos de acompanhamento. O mais longo desses controles (clínico/radiográfico/tomográfico) foi realizado quando completou 21 anos (veja aqui).
Ao longo desse tempo, em quase todos os lugares onde dei aulas, algumas contestações, das mais diversas formas, inclusive violentas, têm sido feitas sempre que apresento essa concepção e os casos clínicos. Um dos argumentos: falta de evidências.
Durante 24 anos fui profissional com atividade exclusivamente voltada para o consultório, quando então passei a dividir a minha atividade profissional como endodontista e professor. A minha carreira “oficial” de professor de endodontia faz agora 12 anos, ainda pouco tempo para dizer-me conhecedor da docência.
Nesse espaço de tempo, porém, aprendi a enxergar com alguma clareza as diferenças entre esses dois tipos de profissionais, o clínico e o professor. Nesse processo pude conhecer os anseios, a insegurança e outros sentimentos de cada um deles. Nesse laboratório utilizei outras, mas eu fui a cobaia principal.
Em mais um desempenho irretocável no filme “O advogado do diabo”, Al Pacino, interpretando o próprio, diz: “o sentimento humano de que mais gosto é a vaidade”. É de fato um sentimento muito presente na vida, em todos os seus segmentos, com uma força que muitas vezes sequer imaginamos. No entanto, é possível que em poucos momentos ele se manifeste tão claramente, ainda que com tentativas de disfarça-lo, como no mundo acadêmico, ou no das pessoas que gravitam em torno dele.
No caso do Brasil, junta-se a isso o comportamento tupiniquim de um povo colonizado na sua alma. É nítida a influência de alguns países sobre o nosso, particularmente dos Estados Unidos. Talvez você, mais jovem, não conheça uma frase famosa dita por Juracy Magalhães*: “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil” (veja aqui). Tudo bem, você não conhecia. Mas, certamente já percebeu a fortíssima influência que esse país exerce em nosso povo.
Esse comportamento se projeta para dentro do país, entre as suas regiões. Percebe-se com relativa facilidade a influência marcante de algumas regiões sobre outras, estados sobre outros, fazendo com que muitas vezes se pratique uma verdadeira autofagia. A autofagia cultural está presente no mundo acadêmico.
Existem diversos momentos em que facilmente se observa a endodontia baseada na autoridade. Ainda hoje, conceitos absolutamente equivocados são defendidos sem a devida comprovação. Por outro lado, sabe-se que a contestação do estabelecido é sempre muito difícil e gera muita polêmica, até porque muitas vezes alguns interesses entram em jogo.
Recentemente surgiu uma proposta muito interessante na endodontia: instrumentar a lesão periapical. Para isso foi desenvolvido um instrumento específico; o Apexum (veja os artigos originais aqui e aqui). Há algum tempo li um texto sobre esse procedimento que achei interessante:
"Deve-se notar que o procedimento com o Apexum é substancialmente diferente da sobreinstrumentação durante o tratamento endodôntico. Este traumatiza o tecido e pode também introduzir antígenos bacterianos no tecido cuja função primordial é combate-los. Quando isso acontece, é provável que ocorra uma reação inflamatória aguda nos tecidos periapicais com o consequente edema. Assim, sintomas de agudização devem ser esperados. Com o Apexum esses eventos não acontecem. Ao contrário, ele deve ter removido o tecido no qual tal resposta poderia ocorrer e permitir o preenchimento do local com um coágulo de sangue fresco, no qual os mecanismos acima não estão presentes. Isso deve explicar o resultado confortável e sem efeito adverso no pós-operatório observado nesse estudo”.
Mesmo enxergando pequenos equívocos na proposta do Apexum e grandes equívocos no texto acima, estou de acordo com a idéia. Apesar do pouqu&i
acute;ssimo tempo destinado à observação dos resultados (percebeu que foi de 3 e 6 meses?), a tentativa de mudança de concepção e sua divulgação através das 2 publicações já merecem atenção.
Chamou a atenção, porém, a rápida aceitação do procedimento no Brasil, sem contestações. É possível que isso seja atribuído à confiabilidade do grupo que o propõe. Afinal, é um grupo internacional e, como vimos, isso tem um peso enorme entre nós. Entretanto, também é possível que, apesar da minha simpatia pelo trabalho, uma análise mais isenta não venha a permitir essa aceitação tão rápida assim.
Sem querer fazer juízo de valor, na escala de poder das evidências científicas atualmente, os estudos em animais ocupam os últimos lugares em termos de validade dos seus resultados. O estudo em cães, que se aplica ao caso, foi o utilizado pelo trabalho. A deduzir pela escala de poder das evidências científicas, teria pouco valor. Veja o que dizem os autores: “Nenhum evento clínico adverso ocorreu no grupo convencional ou no Apexum. Nenhum dos cães apresentou edema ou indicações de sofrimento por dor. Pode-se concluir que o protocolo do Apexum parece ser seguro mecânica e clinicamente”. Deve ser registrado que o acompanhamento não foi histopatológico e sim radiográfico por 3 e 6 meses.
A outra forma de avaliação foi em humanos, um estudo clínico. Este, na escala referida acima, ocupa um dos postos mais elevados. Porém, há um detalhe. Veja parte do resumo do trabalho publicado:
"Aos 3 e 6 meses, 87% e 95% das lesões no grupo tratado com o Apexum, respectivamente, apresentaram cura avançada ou completa, enquanto que somente 22% e 39% das lesões no grupo do tratamento convencional apresentaram esse grau de reparo aos 3 e 6 meses, respectivamente".
É possível que um estudo clínico com acompanhamento radiográfico de 3 e 6 messes não forneça a base sólida que se pretende ter para a recomendação de um procedimento clínico como rotina, ainda que venha de um grupo internacional.
Permito-me um comentário de cunho pessoal.
Além do livro Endodontia Clinica, temos vários artigos (veja aqui) que tratam de duas questões fundamentais nesse processo: o limite apical de trabalho e a questão da obturação. Não tenho nenhum constrangimento em dizer que ainda que os nossos artigos, particularmente os primeiros, apresentem algumas limitações na sua condução e metodologia (graças ao que foi relatado sobre a minha particularidade acadêmica), neles está uma concepção que foi idealizada em 1987 e vem sendo testada ao longo de 25 anos.
Não, essa concepção não foi testada por grupos internacionais “importantes e sérios”, o que a deixa no patamar de “sem evidências” (é o que tem sido dito por alguns). A nossa é a primeira e até agora parece ser a única evidência.
Reconheço que, sob a ótica de estudos clínicos, o que tenho mostrado deixa a desejar em alguns aspectos em termos de como foi conduzido. Ele foi realizado bem antes da minha “existência acadêmica” e por isso peca em alguns aspectos quanto às exigências formais da academia. Porém, não é tão simples aceitar, e acho que você vai concordar comigo, que um trabalho com alguns casos clínicos de 3 e 6 meses de acompanhamento radiográfico, ainda que seja de um “grupo internacional sério”, possua mais confiabilidade do que um de 21 anos com acompanhamento clínico, radiográfico e tomográfico de inúmeros casos.
O nosso trabalho, como já foi dito, apresenta limitações na sua forma, não na concepção. Entretanto, confesso, não nego, que me conforta saber que artigos aceitos e recomendados por vários professores brasileiros, como os de Metzger e colaboradores sobre o Apexum, por exemplo, apresentam limitações claras. A única diferença é que estes são aceitos, aqueles não.
Indiferente não sou, mas isso não me tira o sono. Um pouco conhecedor e acostumado com o comportamento humano, procuro entender. “Ou é má fé cínica ou obtusidade córnea”**.
* Juracy Magalhães – Político baiano (ainda que nascido no Ceará), foi senador da República, deputado federal, adido militar e embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Ministro da Justiça e Relações Exteriores, tendo sido ainda o primeiro Presidente da Petrobrás e presidiu a Companhia Vale do Rio Doce e governador da Bahia por 3 mandatos.
** Essa frase é de (José Maria) Eça de Queiroz (25/11/1845 – 16/08/1900), diplomata e escritor apreciado em todo o mundo e considerado um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos.