Há 4 anos escrevi um texto em que falo de como a minha concepção endodôntica mudou a partir de outubro de 1986, graças ao Prof. Larz Spångberg, editor científico da seção de endodontia do Triple O (clique aqui para ler Pondo os pingos nos is). De lá para cá tentei acompanhar com muito interesse boa parte da sua vida profissional, até fazer um contato por e-mail, em 2007, quando narrei aquele acontecimento que mudara a minha forma de ver a endodontia.
Mostrou-se surpreso pela minha narração detalhada de um fato ocorrido há 21 anos. Como um cavalheiro, gentilmente agradeceu pelo meu texto e humildemente discordou de mim ao não se dar o mérito da sua influência sobre o meu trabalho. Foi naquele momento, entretanto, que para minha surpresa e tristeza, ele me antecipou a sua “aposentadoria” para breve, confirmada pelo editorial escrito em julho de 2011, no Triple O.
A surpresa foi menor do que a tristeza, por ser compreensível o seu desejo de “dedicar mais tempo à família”, como ele relatou à época. A grande tristeza foi pelo fato de que a endodontia perde uma voz importante.
A importância do Prof. Larz Spangberg, entretanto, não se fez traduzir na repercussão do seu editorial no Brasil. Estranho isso, não só pelo que ele representa, mas também pelas sábias colocações sobre um tema da maior importância, em um momento preocupante pelo qual passam o ensino e, consequentemente, também a prática da endodontia. Terá sido justamente essa a causa, ou seja, o seu posicionamento a favor do verdadeiro ensino e não o só ensinar a “fazer um canal”, para a não repercussão do seu editorial? Afinal, a quem deve interessar a reflexão em detrimento de como usar instrumentos/materiais e técnicas?
Se você observar bem perceberá que tenho “conversado” com você quase que sistematicamente nos últimos tempos sobre a questão da seriedade no ensino da endodontia. É só ver a quantidade de posts publicados recentemente no nosso site sobre esse tema (confira aqui).
As novas técnicas serão sempre bem-vindas em endodontia, pelo que de bom podem trazer, mas, sem nenhum receio de como posso ser interpretado, arrisco-me a dizer que, neste momento, do que menos precisamos é de técnicas novas. Precisamos, isso sim, consolidar os princípios estabelecidos e consagrados que deveriam reger a endodontia. Assim, saberemos ver o real valor do que já existe e do que ainda virá. Caso contrário, veremos cada vez mais profissionais serem induzidos por caminhos no mínimo duvidosos.
É cada vez mais comum jovens profissionais “escolherem” esses caminhos, devidamente auxiliados pelos novos donos da verdade que, mesmo sob o manto da humildade e de um altruísmo tão sólido quanto uma geléia, frequentemente deixam vir à tona a sua arrogância e prepotência cada vez que se sentem contrariados nas suas sábias e doutas opiniões.
A preocupação com esse aspecto sempre foi uma tônica na vida do Prof. Spangberg, ao ponto de chamar à responsabilidade a Associação Americana de Endodontia (como você verá no texto), tão endeusada entre nós. Lá como cá, há uma farsa no ar. A endodontia brasileira carece de uma associação nacional forte, séria e isso só será possível quando professores sérios e comprometidos de fato com a qualidade da endodontia estiverem à frente desse processo. Enquanto isso não acontecer, a nossa especialidade não terá uma representatividade à altura; estará voltada somente para o seu interesse paroquial e político.
Como uma homenagem, traduzi há algum tempo e somente agora transcrevo abaixo o último editorial do Prof. Larz Spangberg. É possível que em algum momento você ache que há um pouco de exagero nas suas considerações, mas, certamente, será bem pontual. Preciso esclarecer que a tradução é literal, inclusive preservando todas as aspas do texto original, e em pouquíssimos momentos precisei adaptar a construção da frase ao nosso idioma para melhor compreensão. Somente me permiti fazer negritos em determinados trechos por me parecerem relevantes. Quem quiser ter acesso ao texto original, por favor, clique aqui Are we doing enough?
Estamos fazendo o suficiente?
Este será o meu ultimo editorial neste periódico, porque recentemente renunciei à função de editor da seção de Endodontia. Desfrutei imensamente essa função e pude ver o crescimento do conhecimento básico na endodontia. Durante os 10 anos em que desempenhei essa função testemunhei um aumento assombroso da submissão de artigos. A pesquisa endodôntica não está mais limitada a um pequeno número de países mas se espalha por todos os cantos do mundo. Entretanto, enquanto o interesse pela pesquisa em endodontia está crescendo, a preservação dos dentes na prática clínica está sendo questionada por muitos interesses, particularmente aqueles do lucro mais fácil dessa loucura dos implantes. Acredito que estamos numa encruzilhada e que precisamos avaliar cuidadosamente onde estamos e para onde vamos. Uma análise crítica é muito importante neste momento, para que possamos juntos traçar planos para o
futuro.
Regularmente recebo artigos de estudos de cortes transversais de tratamentos endodônticos de vários países ou grupos populacionais. Esses estudos relatam resultados que são, na maioria das vezes, deprimentemente similares. Eles mostram que a doença residual após tratamento endodôntico, nos grupos populacionais, é elevada. Sob qualquer ângulo que olhemos os resultados, o número de insucessos na prática clínica é inaceitável se compararmos com os resultados de estudos controlados. O resultado de um ano após tratamento endodôntico de canal com polpa viva deveria ser altamente previsível e de sucesso.
Por que estamos nessa situação embaraçosa em uma disciplina que em periódicos científicos costuma apresentar altos índices de sucesso? Na maioria das vezes, os avanços em anos recentes têm sido associados ao desenho dos instrumentos e materiais, o que tem resultado em melhora onde o tratamento pode ser feito com o menor sofrimento para o paciente em menor tempo. Entretanto, há pouca evidência de que o resultado do tratamento seja melhorado de forma significante.
Aspectos essenciais para o sucesso do tratamento endodôntico têm sido acumulados pelas pesquisas, no entanto, todas essas informações se perdem nos consultórios, onde o conhecimento tem sido brutalmente ignorado num processo chamado de “fazer um canal”. A literatura diz que o tratamento de um dente com polpa viva tem um percentual de sucesso significantemente maior do que um com polpa necrosada, infecção do canal e lesão periapical. Na primeira situação, o tratamento tem como foco a assepsia, enquanto que na segunda o foco é a antissepsia. A despeito desse conhecimento, a maioria dos dentistas usa somente uma forma de tratar o canal, superficialmente conhecida como “fazer um canal”. Não é nenhuma surpresa porque a maioria dos programas de pré e pós-doutorado não fazem a distinção entre as várias doenças pulpares e seus tratamentos, uma prática corroborada pelas normas de seguro da American Dental Association/American Association of Endodontists (AAE), que não fazem distinção para o tratamento de dentes com patologia simples ou complexa. É ridículo imaginar que graduandos de bom nível e dentistas/endodontistas são relutantes ou incapazes de diferenciar os 2 conceitos de tratamento limitados a 2 doenças fundamentalmente diferentes. Isso resulta em um ambiente em que o tratamento baseado em ciência dá lugar a um procedimento mecânico (“fazer um canal”).
Há alguma solução para esse sério problema de tratamentos endodônticos precários que proporcionam elevado número de resultados desfavoráveis? Sim, mas não até os especialistas (e suas associações) e educadores da endodontia mudarem profundamente a abordagem do ensino endodôntico, nos dois níveis, pre e pós doutorado. A tendência tem sido descer à mediocridade. Por isso, temos que aceitar que na maioria das faculdades nos Estados Unidos (e provavelmente no mundo), os alunos de graduação possuem experiência suficiente para começar como endodontistas. A experiência que se exige para a graduação vem continuamente baixando a um nível em que mesmo o melhor estudante possui o mínimo de competência, ainda que uma pobre explicação, falta de pacientes, seja dada como causa do problema. Assim, o modelo clássico de ensino não funciona mais e deve ser modificado. Um procedimento endodôntico é irreversível e mais complexo do que uma restauração de amálgama ou resina composta. O currículo escolar também geralmente limita severamente o ensino a um nível em que a técnica ocupa a maior parte do tempo e o conhecimento de patologia, microbiologia e os objetivos do tratamento são minimizados.
Esses tópicos também são geralmente esquecidos em programas de pós-graduação, especialmente naqueles de 2 anos de duração. Os assuntos são ensinados, mas os fatos são raramente praticados. O protocolo de tratamento é modificado regularmente em função do diagnóstico pulpar ou perirradicular? O material de biópsia é regularmente discutido à luz da microscopia ótica? A assepsia é sistematicamente ensinada pelo uso de técnicas microbiológicas? O sucesso da antissepsia é regularmente avaliado por uma simples técnica de cultura ou acompanhamentos sistemáticos durante alguns anos? São técnicas simples de ensino que ajudam o entendimento dos alunos e demonstram fatos. Ao contrário, os futuros especialistas leem infindável quantidade de artigos sobre esses assuntos que frequentemente entram por um ouvido e saem pelo outro sem serem mentalmente absorvidos. Em microbiologia, os alunos de pós-graduação leem e aprendem a regurgitar centenas de espécies bacterianas e mediadores moleculares sem entenderem o que significam clinicamente, se alguma coisa significam. Parecemos estar apaixonados por brinquedos de alta tecnologia e biologia de engenharia tecidual esquecendo os princípios básicos. Sou antiquado o suficiente para acreditar que iremos retornar ao ensino de base sólida e por acompanhamentos rigorosos ter certeza de que alunos de graduação possuem desenvolvimento intelectual para compreender de fato os objetivos do tratamento endodôntico. Isso requer trabalho árduo por parte dos professores e diretores de escolas, solidamente suportados pela comunidade de especialistas em endodontia e suas associações nacionais. A qualidade do tratamento endodôntico na prática tem que melhorar ou restringir-se ao tratamento de canais com polpa viva. Essas mudanças são necessárias para estabelecer a condição do tratamento endodôntico como opção válida de terapia. O tratamento endodôntico é altamente bem-sucedido se executado da forma correta. Somente por um grande esforço de todos nós e abandonando a “promoção social” a tendência pode ser modificada e conduzir à competência.
Ouço frequentemente dos meus amigos especialistas como os clínicos gerais fazem tratamentos endodônticos insatisfatórios, precisando de retratamentos. Entretanto, nós próprios criamos essa situação ao ignorar os programas de pré-doutorado e focando todos os nossos esforços na educação pós-doutorado. Remediar essa séria deficiência é responsabilidade de todos e deve ser compartilhada por “town and gown” (expressão utilizada para designar comunidades distintas numa suposta “cidade universitária”, sendo ‘town’ a parte não acadêmica e ‘gown’ a acadêmica). Por essa razão, as associações de especialistas, como a Associação Americana de Endodontia, devem olhar além do seu interesse paroquial e político < /em>(aqui o autor cita a Associação Americana de Endodontia. No Brasil não existe uma associação nacional de endodontia) e realmente se engajar no processo de educação endodôntica de alto nível em todos os níveis. Esta será uma tarefa muito difícil e exigirá mudanças organizacionais. Enquanto o tratamento endodôntico para a população em geral não for praticado em ótimos níveis, e por isso altamente bem-sucedido, a especialidade não crescerá.
Obrigado por me ouvirem pela última vez. Como sempre, desfrutei a oportunidade de compartilhar os meus pensamentos com vocês.
Larz S.W. Spångberg, DDS, PhD
Section Editor, Endodontology
Vou usar a mesma expressão que o Prof. Spangberg utilizou, para dizer o que penso: sou antiquado o suficiente para poder afirmar que essas mudanças, se acontecerem, não irão acontecer tão cedo.