MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 2

Por Ronaldo Souza

No texto anterior falei que fraturas como essa, sem dúvida, foram fatores determinantes para mudanças no tratamento desses dentes.

Falava, claro, das fraturas que ocorrem em dentes com rizogênese incompleta e o caso abaixo foi o que justificou o comentário.

Fig. 3

Quanto às mudanças no tratamento, referia-me particularmente ao tampão apical.

Tampão apical

Hoje a “endodontia moderna” é ensinada e exibida nas redes sociais.

É o que há de mais moderno e atraente nos dias atuais.

As incansáveis e absolutamente injustificáveis postagens (faço grande esforço para não chama-las de outra coisa) nas redes sociais, com exibição de obturações que vão do “surplus” a absurdos extravasamentos de material obturador, são de uma estupidez sem tamanho.

Não, não vou dizer que a fisiologia tecidual condena esse procedimento.

Deixemos isso, fisiologia tecidual, de lado.

Alguns ministradores de cursos e os professores de redes sociais “estão se lixando” para ela, até por não saberem do que se trata.

Portanto, deixemos de lado.

Independentemente e apesar de tudo isso, obturar canais com a amplitude foraminal vista no caso acima (Fig. 3) é um convite ao extravasamento de material obturador.

E isso representa uma agressão à fisiologia…, opa, quase escapole, foi sem querer. 

Isso representa uma agressão aos tecidos periapicais.

Como uma maneira de contornar esse problema, surgiu o tampão apical.

Apesar de outras sugestões terem sido feitas, como o tampão apical de raspas de dentina, a substância mais recomendada para esse objetivo era o hidróxido de cálcio.

Já há algum tempo, porém, a escolha recai sobre o MTA.

Nos casos em que eram feitas trocas sucessivas da medicação intracanal com hidróxido de cálcio até o fechamento apical (apicificação), tem sido recomendado o uso dessa substância da mesma maneira, ou seja, como medicação intracanal (renovada ou não por mais uma ou duas consultas conforme cada situação) e em seguida a confecção do tampão apical com MTA e obturação do canal.

Por que isso?

O primeiro aspecto a ser observado e entendido é o papel do tampão apical.

Tampão apical 3'

A grande função do tampão apical é conter a obturação dentro do canal.

Em outras palavras, o grande objetivo do tampão apical é funcionar como barreira física e evitar que haja extravasamento de material obturador para os tecidos periapicais.

Ao fazer isso, permite que mais cedo se possa obturar o canal e consequentemente concluir o tratamento, reduzindo-o de forma considerável em termos de tempo, que passa a ser bem menor do que aquele exigido pela apicificação.

Isso, claro, torna possível a imediata realização da restauração coronária definitiva, o que por sua vez deve tornar menor o risco de fratura do dente.

Por que o MTA?

Por apresentar uma característica física que o hidróxido de cálcio não possui; selamento.

Mesmo diante dos avanços inegáveis da Endodontia, tanto no aspecto do conhecimento científico quanto no campo da tecnologia, é surpreendente como a antiga crença do vedamento hermético ainda reina.

Os avanços estão aí à nossa disposição, mas surpreende como a nossa cabeça ficou no passado, quando se atribuía às eventuais falhas da obturação os males do tratamento endodôntico.

Em outras palavras, as eventuais falhas da obturação são as responsáveis pelo insucesso.

Se é assim, temos que vedar hermeticamente.

Se temos que vedar hermeticamente, jamais o faremos com o hidróxido de cálcio, porque este não veda nada.

Conclusão!

Temos que fazer o tampão apical com o MTA.

Perfeito.

Se o conhecimento não é gerado, não é difundido e se não é difundido não se toma conhecimento dele.

Sem que muitos percebam (muitas vezes nem eles), ensinam a usar o MTA e não a entender e tratar a patologia.

Pergunto-me frequentemente que avanço é esse!

Vamos lá.

A terapia realizada com hidróxido de cálcio na apicificação tem o objetivo de ajudar no controle da infecção.

Uma vez alcançado o controle de infecção, tudo mais se resolve.

Observe um dente com polpa viva.

O que acontece com ele?

Irrompe com o canal ainda muito volumoso e vai desenvolvendo.

E vai formando dentina.

Quem forma dentina?

A polpa.

Aí, num belo domingo de manhã, num belo dia de sol, numa bela praia… opa, me perdi.

Aí um dia atinge o estágio de rizogênese completa.

Agora observe outro dente que, por qualquer razão que seja, um dia você percebe que ele não está se “desenvolvendo” como os demais.

“Parou” no tempo.

A raiz não completou a sua rizogênese, as paredes radiculares ficaram com pouca espessura, o canal está muito amplo e tem uma lesão periapical.

E aí você chega à triste conclusão de que houve necrose pulpar.

E com a necrose, a infecção.

Deixe-me aproveitar; ainda se fala de diagnóstico por aí?

Aliás, esqueça, deixa pra lá, diagnóstico não tem mais nenhuma importância.

Não tem mais polpa viva, portanto, não tem mais formação de dentina.

Não tendo mais formação de dentina, não há mais desenvolvimento radicular.

Tendo em vista que é o fato de a polpa estar necrosada e o canal infectado que impede o desenvolvimento radicular, o que se faz?

Faz-se o tratamento endodôntico.

Prefere dizer trata o canal?

Tudo bem, sem problema.

O que se busca?

Remover a causa.

Qual é a causa?

A polpa necrosada e o canal infectado.

Então quer dizer que se eu remover a polpa necrosada e “desinfetar” o canal tá tudo resolvido, o desenvolvimento radicular continua?

Não.

Lembre. Como não há mais quem forme dentina, não pode haver mais desenvolvimento radicular.

O que ocorre então?

Vamos avançar um pouco mais? Mas avançar mesmo

Se depois de preparar o canal e fazer 1 ou 2 medicações ou até mais (conforme a necessidade) com hidróxido de cálcio, caso existisse e eu usasse um “medidor de infecção” e ele dissesse que não tem mais infecção, o que fazer?

Não tendo mais infecção, mas ainda tendo o ápice aberto, vou fazer um tampão apical e obturar.

Voltemos à figura 4.

Já disse lá em cima que a grande função do tampão apical é conter a obturação dentro do canal.

Engana-se quem imagina que o tampão apical tem como objetivos selar o canal, exercer ação antimicrobiana, estimular a mineralização tecidual ou qualquer outra coisa nesse sentido.

Não. O tampão apical não tem esses objetivos.

Se a substância ou material utilizado, além de conter a obturação no canal, apresenta as características citadas, ótimo, são bem-vindas.

Mas não são objetivos.

O objetivo do tampão apical, insisto, é evitar extravasamento de material obturador para os tecidos periapicais.

Vejamos questões como as ações antimicrobiana e mineralizadora, ambas atribuídas ao MTA.

A ação antimicrobiana desejada foi obtida durante a fase de preparo do canal, onde se incluem as medicações com hidróxido de cálcio (1 ou 2 medicações conforme a necessidade ou até mais, dito aí em cima).

Da mesma forma com a ação mineralizadora.

Uma vez controlada a infecção, atribui-se também ao hidróxido de cálcio a capacidade de reverter o pH ácido, característico da inflamação, em pH alcalino, algo em torno de 12.5.

Sabendo-se, por exemplo, que a fosfatase alcalina, uma enzima associada à mineralização tecidual, é ativada em pH entre 8 e 10, seria então desencadeado o estímulo à mineralização.

Finalmente, a questão que parece ser a mais importante e que já foi abordada antes.

Por que usar o MTA?

Cuja resposta foi, por apresentar uma característica física que o hidróxido de cálcio não possui; selamento.

Alguns professores chegaram a atribuir ao MTA a capacidade de vedar o canal.

Lamento informar que a capacidade de exercer o vedamento nos níveis desejados e ditos ele não tem.

Vamos acompanhar o caso clínico da figura abaixo, sem descreve-lo em detalhes (tomaria muito tempo), a não ser a partir do momento em que pude obtura-lo (o artigo foi publicado em 2012 e pode ser lido aqui).

E vamos faze-lo por etapas.

Figura 4 A e B

Observe na figura A um cone de guta percha nº 80, com a ponta cortada, e veja como ele está absolutamente folgado, perdido no canal. Acima dele a largura do canal salta aos olhos. Imaginar um cone perfeitamente travado e associa-lo a qualquer possibilidade de vedamento hermético nessa situação é inimaginável.

Na figura B o cone está invertido e mesmo assim folgado. Perceba, porém, que todo aquele espaço radiolúcido acima dele na figura A está agora radiopaco, conforme apontam as setas brancas. Ali foi feito um tampão apical de hidróxido de cálcio.

Chamo a atenção para o fato de que o dente está sob isolamento absoluto, com o grampo colocado no pré-molar, o que pode ser percebido pela asa do grampo apontada pelas setas pretas. Em ambas as figuras há imagem de lesão periapical.

Figura 4 C, D e E

Em C a obturação está concluída, com espaço vazio deixado para colocação de pino provisório. É nítido que a imagem da obturação foge dos padrões. As setas brancas indicam a presença do tampão apical de hidróxido de cálcio.

A radiografia em D foi feita 2 meses e 28 dias depois da obturação do canal em C. Ela foi feita com esse espaço de tempo justamente para mostrar que o hidróxido de cálcio não estava mais presente. O canal agora está vazio naquela porção final, como apontam as setas brancas. O tampão apical não existe mais.

Vamos ver essas imagens de D e E mais de perto na figura abaixo.

Figura 4 F e G

Aqui estão. A imagem em F é a mesma de D e em G a mesma de E, só que ambas, F e G, “pegando” somente a porção radicular e em tamanho maior.

A linha branca pontilhada em F mostra o espaço que tinha sido preenchido pelo tampão com hidróxido de cálcio e agora está vazio. Como se pode ver, é enorme esse espaço.

Se o insucesso do tratamento endodôntico se explica por eventuais pequenas falhas da obturação, daí a necessidade de vedamento hermético, aqui não estamos diante de pequenas falhas e sim de uma verdadeira “cratera”. Sendo assim, nenhuma chance de sucesso.

Segundo todos, isso mesmo, como está escrito (não é erro de digitação), segundo todos é por isso que o tampão apical não pode ser feito com hidróxido de cálcio.

Porque ele não veda, ele não “fica lá”, ele “desaparece” e deixa o espaço vazio.

Tem que ser feito, segundo todos, com MTA.

Observe agora as setas amarela e preta (ainda em F). Ambas apontam para a espessura da parede remanescente de dentina.

Vamos agora para a imagem em G. As setas brancas apontam para o fechamento de toda a porção que antes estava completamente aberta, cuja largura mesio-distal pode ser dimensionada pela linha branca pontilhada em F. Todo aquele espaço vazio, anteriormente ocupado pelo tampão apical de hidróxido de cálcio agora está vedado por tecido mineralizado formado pelo organismo.

É isso que se chama de selamento biológico.

Vamos juntos outra vez?

Se o tampão apical tivesse sido feito com MTA, você acha que ali teria ocorrido deposição de tecido mineralizado pelo organismo constituindo o selamento biológico?

Claro que não!

Por uma razão bem simples.

Ali, naquele espaço, estaria o MTA.

Você aprendeu em algum momento da sua vida que dois corpos não ocupam o mesmo espaço físico?

Se ali estaria o MTA, como ali o organismo depositaria tecido mineralizado?

Observe a espessura da parede de dentina apontada pela seta amarela.

Ela se alterou, ficou mais espessa?

Não.

Por que?

Porque ali está a obturação do canal.

Observe agora a espessura da parede de dentina apontada pela seta preta.

Ela se alterou, ficou mais espessa?

Sim, e como ficou.

Ali não tinha nem obturação de canal nem MTA.

Ali não tinha nada, estava vazio.

E existe agora tecido mineralizado formado pelo próprio organismo do paciente.

E ele, organismo do paciente, me mandou uma mensagem.

“Ronaldo, muito obrigado por não ter me agredido com material obturador jogado nos meus tecidos periapicais e por ainda me ter permitido, após o controle da infecção, formar um tecido que só eu sei formar”.

Posso lhe fazer uma pergunta?

Quando você acha que há mais chance de formar selamento biológico em casos assim, quando se usa o MTA ou quando se usa hidróxido de cálcio?

Só para lhe dar uma ideia, se é que isso tem alguma importância para os professores das redes sociais e dos cursinhos de especialização, é consenso que o selamento biológico é a melhor demonstração de reparo em Endodontia.

Sempre digo que é a melhor forma do organismo lhe agradecer; promovendo reparo pleno.

Isso é sucesso.

Sabe o que preciso fazer agora?

Vamos juntos outra vez.

Qual é a substância mais cara entre as duas?

Há algum interesse nisso?

Ao dizer que se usa, qual dá mais “status”?

Entende?

Vamos lá.

Se o tratamento falhar e você achar que pode e deve tentar outra vez, isto é, se houver necessidade de nova intervenção, ela será possível se o tampão apical tiver sido feito com o hidróxido de cálcio.

Se tiver sido feito com o MTA a abordagem terá que ser cirúrgica.

Sabe aquele quadro de “virtudes” do tampão apical lá em cima na figura 4?

Todas aquelas vantagens atribuídas ao tampão apical com MTA o hidróxido de cálcio também apresenta.

Todas.

Mas, a aquele quadro das “virtudes” do tampão apical eu acrescentaria duas vantagens do hidróxido de cálcio sobre o MTA.

Custo e reversibilidade do tratamento.

“Sabe qual é a mais nova de Ronaldo? Disse que o MTA não presta”.

Antes que alguém acometido pela Síndrome do Caranguejo diga isso, pergunto a você.

Estou dizendo que o MTA não é boa opção, não presta ou qualquer outra coisa nesse sentido?

Não.

Estou chamando a atenção para uma alternativa que em determinadas situações (veremos outras) possui as mesmas chances de sucesso, para a qual, não me pergunte porque, as cortinas foram fechadas.

Se você voltar lá em cima neste texto vai encontrar as seguintes frases:

Se o conhecimento não é gerado, não é difundido e se não é difundido não se toma conhecimento dele.

Sem que muitos percebam (muitas vezes nem eles), ensinam a usar o MTA e não a entender e tratar a patologia.

Por isso não consigo enxergar o avanço que tanto anunciam nos cursinhos de endodontia.

Mesmo sabendo qual é o conceito de avanço deles.

Daí a importância de trazer de volta uma questão que abordei no texto Qual é o nosso real tamanho?

Ao enaltecer as qualidades dos materiais tiram do foco a compreensão do problema por parte dos alunos.

Fazem acreditar que é o material o fator determinante do sucesso e não o controle de infecção.

O que, na verdade, estão fazendo esses “professores”?

Estão desensinando.

E assim seguirão, fazendo de conta.

“A maior desgraça de um país pobre é que, em vez de produzir riqueza, vai produzindo ricos. Poderia hoje acrescentar que outro problema das nações pobres é que, em vez de produzirem conhecimento, produzem doutores. Em vez de promover pesquisa, emitem diplomas. Outra desgraça de uma nação pobre é o modelo único de sucesso que vendem às novas gerações.
Mia Couto

Cada um escolhe seu caminho.

Sigamos o nosso.

E o nosso vai nos levar para o próximo texto sobre este tema.