MTA ou hidróxido de cálcio? Final

Por Ronaldo Souza

No texto MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 3, conversamos sobre o tratamento de perfuração de furca com hidróxido de cálcio e o caso mostrado foi este abaixo.

Figura 6 A, B, C e D

Como as interpretações correm ao sabor dos ventos e muitas vezes os ventos são soprados com objetivos bem claros para que viajem sem controle, reforço que em nenhum momento falei ou insinuei que condeno o uso do MTA.

Pelo contrário, o MTA é um bom material e quando necessário recomendo o seu uso.

Na perfuração de furca do caso acima, por exemplo, a “proteção” do tecido mineralizado que se formou fechando a perfuração teria sido feita com MTA caso ele existisse na época em que o tratamento foi realizado.

O que contesto e combato é “ensinar” que são os materiais os fatores determinantes do sucesso em Endodontia.

É um erro injustificável que se comete.

O que tenho feito, desde os textos anteriores, é chamar a atenção para o entendimento do problema.

Ao entender a questão, percebe-se mais facilmente que não somos dependentes do material como alguns querem fazer crer.

Lamentavelmente, porém, deixamos de ensinar que quando se entende o que se faz, faz-se melhor.

Já vimos que o hidróxido de cálcio desempenha o mesmo papel que o MTA como tampão apical, mesmo “sem estar presente” algum tempo depois de feito o tampão.

Já vimos que ele também faz o mesmo no tratamento de perfurações de furca.

O que mais poderíamos ver?

Hidróxido de cálcio nas perfurações radiculares

Vamos ver como o hidróxido de cálcio pode agir nos casos de perfurações radiculares.

Figura 7 A, B, C e D

Pela aparente destruição coronária é possível que o planejamento deste caso tenha sido voltado para a realização de coroa protética com retenção intrarradicular e deve ter ocorrido um acidente no preparo do espaço para o pino.

Digo isso porque a paciente já me foi encaminhada com a radiografia da figura 7 A, feita pelo colega que a encaminhou. As outras três (B, C e D) foram feitas durante o tratamento.

Alguns podem imaginar que a perfuração só se deu no local apontado pela seta na figura A, mas não foi. Ela ocorreu no local onde está o ponto preto sobre o instrumento usado pelo colega para fazer o mapeamento da perfuração. Ou seja, no começo do terço médio da face vestibular, como mostra o ponto branco em B. Ali está o local da perfuração. A partir desse ponto o instrumento está inteiramente fora do canal, está no periodonto.

A aparência radiográfica sugere que a obturação do canal está bem feita, com imagem compatível com o que se costuma chamar de um tratamento endodôntico bem realizado. Por esta razão, resolvi tratar somente a perfuração.

Inicialmente fiz uma curetagem no local em que ela ocorreu e em seguida a colocação da pasta de hidróxido de cálcio com soro fisiológico preenchendo todo o terço cervical e começo do médio (C).

Nas consultas seguintes a curetagem não era repetida, somente a remoção do hidróxido de cálcio e “lavagem” do local com soro fisiológico. Em seguida, secagem e novo preenchimento com o hidróxido de cálcio.

Pode parecer que as faces mesial e distal estavam com cavidades, mas estavam restauradas por resina composta sem radiopacidade (é um caso clínico de alguns anos atrás). Assim, apesar da aparente destruição coronária que fez o colega planejar uma coroa protética com retenção intrarradicular, era plenamente possível fazer um selamento coronário provisório confiável entre as consultas, que foram realizadas durante oito meses, não necessariamente uma a cada mês.

Durante esse tempo fui acompanhando o “fechamento” da perfuração por tecido mineralizado. Para isso “jogava” a luz do refletor sobre o espelho clínico e através deste via as mudanças em andamento.

Quando finalmente percebi a definição do fechamento da perfuração, obturei aquela porção do canal, terços cervical e começo do médio, com guta percha aquecida e plastificada e cimento obturador. Observe a diferença na radiopacidade do “novo” material obturador (seta branca) com a obturação original do terço apical (seta preta).

Por não haver necessidade, tendo em vista que a perfuração já não existia mais, não foi feito nenhum tampão com hidróxido de cálcio.

Figura 8 A, B e C

Acompanhemos agora este caso da figura 8. Da mesma forma que no caso anterior, a paciente trouxe a radiografia vista em A.

Aqui alguém poderia imaginar que “quase” ocorreu a perfuração, pois a ponta do instrumento usado pelo colega para sondar se tinha havido perfuração aparenta ainda estar em dentina. O próprio colega, porém, disse que ao preparar o espaço para pino percebeu um discreto “fio” de sangue. Assustado, parou e radiografou.

Houve sim a perfuração, também na face vestibular, no local marcado pelo ponto preto sobre o instrumento, ainda na figura A. A partir dali o instrumento está no periodonto.

Após curetagem da perfuração, o hidróxido de cálcio foi usado nas mesmas condições descritas para o caso da figura 7 (setas pretas em 8 B).

Entretanto, se no caso anterior era plenamente possível fazer um selamento coronário provisório confiável entre as consultas, aqui não era.

Perceba que o dente não tem coroa. Ainda que se pudesse fazer isolamento absoluto, como mostra a figura C, não havia como fazer o selamento confiável entre muitas consultas, como seria necessário.

Por esta razão a abordagem foi diferente.

Diferentemente do caso anterior, em que a coroa permitia selamento provisório confiável entre as consultas e assim pude aguardar o fechamento da perfuração, foram feitas somente duas medicações com hidróxido de cálcio visando o tratamento da perfuração. O canal foi então retratado (C).

Figura 8 D, E e F''

Em D podemos ver o momento em que a obturação está sendo feita sob isolamento absoluto. No local da perfuração foi feito um tampão de hidróxido de cálcio (ponto preto) e o canal foi obturado. Em E a obturação está concluída e o dente selado. Perceba a homogeneidade e radiopacidade da obturação (seta preta), reflexo da plastificação da guta percha e condensação vertical vigorosa, com discretíssimo extravasamento do material obturador (seta amarela), que sugere alguma pequena falha na confecção do tampão de hidróxido de cálcio.

A paciente é uma médica que tem um filho e uma sobrinha dentistas. A figura F mostra uma radiografia de acompanhamento realizada pela sobrinha nove anos depois da conclusão do tratamento. Observe que o dente vizinho (11) foi extraído e foi instalada uma ponte fixa extensa (de orelha a orelha).

Não há mais lesão periapical.

Compare agora a obturação em E com a da figura F e observe que a homogeneidade referida em E (seta preta) desapareceu. Nove anos depois a obturação está cheia de falhas (setas pretas em F).

Por que as falhas numa obturação que era tão homogênea?

Vamos desenvolver uma linha de raciocínio juntos?

  1. No caso clínico da figura 7, como a coroa do dente permitia selamento provisório confiável, fiz o tratamento com hidróxido de cálcio durante oito meses e quando constatei o fechamento da perfuração por tecido mineralizado obturei o canal.
  2. Como no caso da figura 8 não podia confiar na qualidade do selamento provisório pela ausência da coroa, fiz somente duas consultas com hidróxido de cálcio no espaço de 21 dias e com ele fiz o tampão e obturei o canal.
  3. No caso da figura 5 do texto MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 2, o tampão apical de hidróxido de cálcio “desapareceu” e mesmo o tamanho daquele espaço vazio não impediu o reparo com selamento biológico (figuras D, E, F e G).
  4. Neste caso da figura 8 acima, é claro que o tampão “lateral” de hidróxido de cálcio também desapareceu, porém, mais uma vez, o espaço vazio deixado por ele não impediu o reparo.
  5. Aqui, mais facilmente se comprova algo. Uma vez que o tampão “lateral” de hidróxido de cálcio desapareceu, é claro que a perfuração (ainda presente, razão pela qual foi feito o tampão) permite que fluidos teciduais penetrem no canal.
  6. Dois são os componentes da obturação; guta percha e cimento obturador. Qual deles é solúvel? O cimento. Ao penetrarem no canal pela perfuração, os fluidos teciduais solubilizam o cimento obturador que é “levado” do canal.
  7. Se um dos componentes da obturação (o cimento) “desaparece”, ela perde a homogeneidade.
  8. A perda da homogeneidade é um reflexo da penetração de fluidos teciduais no canal e a consequente solubilização do cimento obturador.

Vamos ver agora um detalhe que talvez você não tenha percebido, para o qual só agora chamo a atenção.

Veja o forame incisivo na figura 8 A. Está normal e entre ele e o dente em questão (21) existe uma “faixa” radiopaca, como se os mantivesse afastados um do outro. Observe como o espaço do ligamento periodontal do referido dente está com espessura normal e plenamente perceptível. É nessa imagem que está registrado o momento em que o periodonto foi agredido pela broca que fez a perfuração e o colega colocou um instrumento para confirmar se ela teria ocorrido ou não. Portanto, nesse momento, o periodonto estava normal.

Observe como na imagem seguinte (8 B) o forame incisivo parece “ter crescido e avançado para cima da raiz” do 21. Perceba que nas imagens seguintes (8 C, D e E) o forame incisivo apresenta essas mesmas características.

Agora, já na imagem em F, o forame voltou ao seu “tamanho normal”, o espaço do ligamento periodontal do dente está outra vez com espessura normal e plenamente perceptível e a faixa radiopaca também está de volta, como se os mantivesse afastados um do outro.

É para o que apontam as setas brancas nas figuras 8 B, C, D e E; para a “faixa escura” (radiolúcida) que aparece em todas elas. Perceba também que essa imagem da faixa escura está justamente “sobre” o local onde houve a perfuração.

Observe agora como em nenhum momento o forame incisivo parece “ter crescido e avançado para cima da raiz” do 11. Todo o tempo a faixa radiopaca entre o 11 e o forame incisivo se manteve intacta.

Vamos juntos outra vez?

O que acontece quando um canal está com polpa necrosada e infectada e existe um canal lateral saindo na porção mesial ou distal da raiz?

É comum aparecer uma lesão lateral, como uma resposta ao canal infectado que deságua em mesial ou distal e é flagrado pela imagem bidimensional da radiografia periapical.

Se esse canal lateral estivesse “saindo” na face vestibular ou palatina da raiz, muito provavelmente você não perceberia a lesão lateral que ele provocaria porque, sendo a imagem radiográfica bidimensional ela só “mostra” o que está em mesial ou distal.

Você está lembrado que eu disse que a perfuração ocorreu na face vestibular da raiz?

Tal qual o canal lateral infectado gerando a lesão lateral, se a perfuração tivesse sido na face mesial ou distal haveria uma lesão lateral como resposta a agressão ao periodonto provocada pela broca.

Quer dizer então que não tem lesão?

Tem sim. Mas como ela está na face vestibular da raiz não é flagrada pela imagem bidimensional da radiografia. Aí ela se manifesta no periodonto vestibular e, pela superposição de imagens, aparenta estar “sobre ou dentro” da raiz.

É o que as setas brancas apontam.

Na figura 8 A ela não aparece porque, apesar de recém agredido, o periodonto ainda estava normal.

Na figura 8 F ela não aparece porque o periodonto voltou ao normal.

Por que voltou ao normal?

Porque houve reparo.

Reparo que se deu por uma razão bem simples.

O tratamento endodôntico realizado não se apoiou em um material. Ele se apoiou no conhecimento de que, criadas as condições adequadas, o organismo do paciente promove a cura.

A substância utilizada, hidróxido de cálcio, foi complemento importante na promoção do reparo, não a sua razão.

Assim, uma extensa prótese (de orelha a orelha) foi instalada tendo como pilar um dente com perfuração radicular tratado com hidróxido de cálcio nas condições descritas.

Vamos fechar?

A literatura endodôntica diz há mais de 60 anos que “a maioria dos insucessos do tratamento endodôntico se deve a pequenas falhas da obturação”.

No equívoco dessa concepção, que se mantém ao longo de tantos anos, reside uma das razões do encantamento pelo MTA e consequente descarte do hidróxido de cálcio; o primeiro sela, o segundo não.

Como preconizar um material que não sela?

Tampão apical 2''

Observe a figura acima. Aí estão as características que atribuo igualmente ao MTA e ao hidróxido de cálcio e que já foram comentadas no texto MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 2. Perceba que entre elas não consta o selamento.

Já há muitos anos venho dizendo, e por isso “apanhei” muito em algumas partes do Brasil, que não é o vedamento do canal quem responde pelo sucesso do tratamento endodôntico.

Entretanto, apesar de discordar inteiramente, por considera-la absolutamente equivocada, da concepção que atribui ao vedamento (como quer que o queiram chamar – hermético, perfeito, tridimensional…) o sucesso pelo tratamento endodôntico, nunca tive e não tenho a menor intenção de tirar do selamento a importância do seu papel.

Não acredito, porém, que o MTA foi idealizado com esse objetivo.

Como também disse naquele texto, o grande objetivo do tampão apical é funcionar como barreira física e evitar que haja extravasamento de material obturador para os tecidos periapicais. 

A razão pela qual comecei este texto (dividido em quatro partes) falando de casos com rizogênese incompleta foi justamente a de mostrar e reforçar que não dependemos do selamento, do jeito que ele é pensado e proposto, para ter sucesso em Endodontia.

Por outro lado, não posso deixar de aproveitar a oportunidade para também reforçar que às virtudes atribuídas a ambos, acrescento mais duas que só vejo no hidróxido de cálcio e que também já foram comentadas no MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 2; o menor custo e o fato de que, diante de eventual falha no tratamento, pode-se tentar outra vez. Ao contrário, caso tenha sido feito com MTA, não se pode reverter com novo tratamento; a nova abordagem terá que ser cirúrgica.

Vejo importância nas duas.

E, finalmente, ao mostrar a resolução de casos de rizogênese incompleta, forame muito amplo, perfuração de furca e perfuração radicular tratados com sucesso com hidróxido de cálcio, contemplo as principais indicações do MTA na Endodontia.

Além dessas, o que mais seria relevante? O seu uso na cirurgia parendodôntica.

Mas, insisto, o desejo não é contestar a importância do MTA.

Ao abordar esse tema, pretendo ir muito além dos jardins.

O que desejo, isso sim, é chamar a atenção para a postura atual de alguns “professores”, algo que se alastrou entre alunos e profissionais da Endodontia, particularmente os mais jovens.

A recomendação de retratamento de molar em sessão única é a banalização absurda da Endodontia e não reflete somente ignorância, mas também irresponsabilidade.

Jogar quilos e quilos de material obturador nos tecidos periapicais como comprovação de qualquer coisa que seja nada mais representa do que o desconhecimento da fisiologia tecidual. Para além disso, esconder-se no argumento, muitas vezes utilizado, de que não temos que entender de fisiologia tecidual porque somos clínicos e não histologistas ou patologistas, expõe a tola esperteza de que alguns são portadores.

Prescrever anti-inflamatório para sintomatologia pós-operatória de canais com necrose pulpar e infecção tratados em sessão única é… sem comentários.

Assim, mais uma vez, o desejo é chamar a atenção para o rumo que está tomando o ensino da Endodontia, onde se privilegiam materiais e instrumentos em detrimento do verdadeiro conhecimento e prática da Endodontia, nos quais estão inseridos os materiais e instrumentos.

Mais importante do que qualquer material ou sistema utilizado é entender o que representam de fato a infecção endodôntica e a sua consequência, a periodontite apical.

A Endodontia deve ser a única especialidade da área de saúde em que se pretende enfrentar a infecção com materiais.

A riqueza está no saber, não no fazer.

Há pouca ou nenhuma riqueza no fazer.

Sem o saber, o fazer nada é além de habilidade manual.

Ficam vazias as nossas mentes, a nossa imaginação, a nossa vida, quando tiramos o colorido do saber e tentamos transferi-lo para outras coisas.

Em pouco tempo estaremos cansados, muito cansados.

Cansados, perderemos o prazer, a alegria, e faremos a Endodontia descolorida do “fazer um canal”.

Ensinar a usar MTA ou qualquer outro material é muito pouco.

É nada.

Ensine ao aluno a entender a patologia e aí ensine a trata-la usando hidróxido de cálcio, MTA ou qualquer outra substância.

Ensine a ele que o colorido está na imaginação/conhecimento e não no instrumento ou no material.

Desde quando é a lâmina do bisturi que salva o paciente?