E os nossos filhos?

Por Ronaldo Souza

Como foi bonito.

Talvez tenha sido o momento mais rico do país.

Ainda muito jovem, acompanhei. Entusiasmava-me e admirava aqueles homens e mulheres que saiam às ruas para dizer alguma coisa. Aquilo sim era dizer alguma coisa, ainda que fossem poucas as palavras e em muitos momentos até inexistissem. Mas de quantas palavras preciso para dizer alguma coisa se a minha atitude tem a força do fazer?

E o Brasil rompeu com os grilhões que o amordaçavam.

Teria sido mais fácil e menos cruel se tivesse usado a palavra em vários momentos. A palavra de um país é a sua imprensa e esta não estava a serviço daqueles homens e mulheres. Servia não ao seu povo, mas a outro senhor. Um senhor com o qual estivera desde a primeira noite de trevas.

Ainda que mais recentemente o órgão mais forte da imprensa tenha feito cinicamente e às pressas um mea culpa, o pecado que ele cometeu ficará marcado para sempre na História e na memória do povo brasileiro.

Não fui às ruas. 

Hoje, anos depois, entendo que foi a viagem que não fiz.

Talvez o ainda não despertar pleno para a vida do país e para a importância da política me tenha feito um participante indireto, sem estar na linha de frente.

Talvez me confortem a idade e o fato de que a minha presença, ou ausência, não fizesse nenhuma diferença, dada a quantidade de pessoas que, espontaneamente, iam às ruas se manifestar contra a opressão e os prejuízos que aquele regime instalado à força trazia ao país.

Daquelas pessoas que lutaram contra aquele regime, muitas foram presas, torturadas, exiladas, mortas e outras tiveram que se esconder. Como era possível que pais, irmãos, filhos, famílias que se separavam para não morrer, que lutavam por mim, por você, fossem condenados pela própria sociedade pela qual lutavam? Elas nos eram apresentadas como o mal a ser combatido, o câncer a ser extirpado.

Outros tempos, democracia instaurada (pela qual alguns deram a vida), o país buscando o seu rumo, e eis que em São Paulo surge uma manifestação contra o aumento de vinte centavos no preço da passagem dos ônibus.

O movimento cresceu. Nada diante daqueles tempos, mas parecia surgir um momento importante para o país.

Pensei em ir às ruas naquele momento. Pelo menos para ver, observar, sentir quem sabe o coração bater mais forte. Seria algo como “deixe eu viver essa sensação”. Num outro momento, tentaria levar as minhas filhas, as mesmas que quando crianças sempre entraram comigo na cabine de votação para digitar os números dos “nossos” candidatos.

Mesmo sabendo que nessa última década o povo desse país teve conquistas como jamais tinha tido, algo mais precisava ser feito para mostrar aos políticos que mais avanços podiam ser alcançados de maneira mais rápida e consistente. E eu me via querendo também me incorporar às manifestações que pareciam ter inicialmente esse objetivo.

Adiei a minha viagem.

No primeiro momento, aquela palavra que nunca fora a nosso favor, que sempre esteve com os mais fortes, fez o que está no seu DNA; determinar a contenção à força de mais uma manifestação popular. E mais uma vez a violência oficial entrou em campo.

O movimento cresceu de forma assustadora. “O gigante acordou”, dizia-se. Porém, de repente, aqueles jovens que tinham ido protestar contra o aumento de 20 centavos no preço do transporte já não importavam mais. Aquela manifestação justa e desejável já tinha ficado para trás. A violência era a tônica do processo. Não, o gigante não tinha acordado, mas um velho e conhecido monstro. Forte, poderoso, mas jamais um gigante.

“Nós perdemos e devemos recuperar nosso caso de amor com a palavra. Eu sou tão culpado quanto outros por ter exaltado a imagem às expensas da palavra”. Steven Spielberg, o mago das imagens, sabe da força da palavra. É, sobretudo, uma arma poderosíssima. Talvez mais do que ninguém Spielberg sabe que a palavra tem o poder de reverter até a expressão da imagem.

Percebeu-se a força do movimento e aquela palavra que sempre esteve com os poderosos relembrou os seus velhos tempos. Tentou criar um clima semelhante a aquele que trouxe a noite para a vida dos brasileiros contra a qual lutaram grandes homens e mulheres durante 21 anos.

Era a força da palavra, porém mais uma vez submetida a outros interesses que não os do povo.
Era a palavra que mudava vergonhosa e repentinamente e se adaptava à conveniência da situação.

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Não, a minha viagem já não tinha mais sentido.

Como fizeram aqueles homens e mulheres, eu queria “brigar” pelo meu país, não contra ele.

Um país que, apesar das dificuldades e erros cometidos, conseguiu aliviar a condição miserável de milhões dos seus filhos que viviam bem abaixo da linha de pobreza e da condição de seres humanos.

Um país que sabe que ainda existem outros milhões de filhos que precisam ser removidos dessa condição, mas que por eles continua lutando e por isso hoje desfruta de grande respeito e credibilidade internacionais, como jamais tinha conseguido antes.

Como podem agora os políticos, entre os quais candidatos à presidência da república, e a imprensa chamar as pessoas para irem às ruas “protestar”, sabendo que não existe mais um movimento popular espontâneo?

Como pode uma candidata dizer abertamente que ainda conta com as novas manifestações? Para que?

Por que e que tipo de interesse eu, brasileiro, conhecedor dos descaminhos de séculos desse país e do quanto tem sido feito para mudar essa vergonhosa realidade, teria para ir para as ruas gerar o caos? O que ganhamos ao tentar desfazer a imagem do país conhecido pela alegria e bondade do seu povo e agora também pela sua pujança?

A viagem que nunca fiz e que poderia ser feita, mesmo que jamais com a plenitude daquela que me fugiu das mãos, pode esperar. Se não acontecer, vai me restar o consolo de tê-la feito através da minha imaginação.

E as minhas filhas?

Recorro ao texto de Fernando Brito:

“Qual o sentido de, em plena vigência democrática, empurrar jovens brasileiros contra policiais fortemente armados, despreparados, e que veem os “mascarados” como interessados apenas em “violência” e “vandalismo gratuito”?”

Quem sabe elas nunca precisem. Mas já são gratas a aqueles homens e mulheres que brigaram lá atrás para que elas tivessem direito à vida com liberdade que têm.