A dor e a anestesia

Nada seria possível ou suportável se não fosse descoberta uma forma de vencer a dor. Por isso, a humanidade deve muito a Thomas Green Morton, dentista americano. Foi ele quem inventou a anestesia.

Dentista como ele, ao longo dos anos tive oportunidade de “ver” o valor da anestesia. Como endodontista, sempre fez bem ver que tinha nas minhas mãos o dom de aliviar a dor dos meus pacientes no momento da anestesia. Ali, para eles, o alívio de todo o sofrimento, para mim a alegria de ser o responsável por isso.

Para eles, o alívio, para mim a alegria. Mal sabiam que a minha alegria era maior do que o sentimento de alívio deles, alegria que se transformava em estímulo constante para enfrentar as dificuldades inerentes a qualquer profissão, ainda mais na área de saúde.

Com o tempo, porém, fui percebendo que aquele momento, tão importante para ele por ter de volta o bem estar, inclusive emocional, era pouco para mim. Fui aprendendo que mais importante do que tirar a dor era tirar a causa da dor. Se o tratamento endodôntico (tratamento de canal) que eu faria na sequência não eliminasse a causa, o simples controle da dor, apesar dos evidentes benefícios ao paciente naquele momento, perdia o valor. Como profissional de saúde, eu estava ali para trazer aquele alívio imediato ao meu paciente, mas, sobretudo, para remover a causa da sua dor; a sua doença.

Não foi muito difícil. Hoje vejo assim. Não foi muito difícil.

Entretanto, apesar de normalmente indesejável, a dor, aprendi com os livros, mas também com a vida, não significa somente sofrimento. Ela é uma dádiva divina. A dor é o sinal de alerta do organismo para dizer que algo não está bem. A dor é um dos sinais que o organismo utiliza para mostrar que já está mobilizado no sentido de localizar, combater e eliminar a doença que se manifesta.

É difícil, porém, imaginar que as dores de um povo são um reflexo da mobilização do “organismo” que pode alivia-las; os governantes. Os governantes são os profissionais da saúde do povo.

A história brasileira revela em todos os seus momentos governos para o bem estar dos privilegiados. Os poderosos, os ricos, sempre tiveram a proteção dos deuses. Vá um pouco lá atrás à história brasileira e veja como se formaram as castas, as “famílias tradicionais” e do que elas foram capazes.

Simples e objetivamente, a história mais recente registra que dois governos deram atenção aos menos favorecidos; o de Getúlio Vargas e o de João Goulart (Jango). Como terminaram? Em afastamentos impostos pelas classes privilegiadas. Getúlio, levado ao suicídio e João Goulart, governo marcado pela abertura às organizações sociais, deposto, exilado, com a instalação da ditadura militar de 1964.

Quem estava ao lado das forças que impuseram essas páginas negras e sofrimento à nação brasileira? A imprensa, historicamente ligada aos poderosos. É inesquecível a manchete de O Globo em 04 de abril de 1964, quatro dias após a implantação do golpe militar: “Ressurge a Democracia”.

A doença de que está acometida a sociedade brasileira jamais teve cura. A anestesia social, produzida em larga escala pelos faustões, gugus, luciano hulks, tufões, carminhas, tem se mostrado com uma eficiência de causar inveja ao melhor dos anestesiologistas.

Em um momento em que muitas verdades, comprovadas, sequer chegam ao conhecimento da sociedade, outras “verdades” são criadas, manipuladas, distorcidas, pela imprensa que só responde aos seus interesses em nome, mais uma vez, daqueles que são a razão da sua existência: os privilegiados.

A imprensa brasileira tem se revelado o mais inescrupuloso dos médicos. Mantém o seu paciente eternamente anestesiado, sem o menor compromisso com a cura do mal do qual ele padece.

Diante de qualquer sinal de que não somente as dores do povo, mas a sua causa, vão sendo resolvidas, os cavaleiros do apocalipse ressurgem das cinzas e ateiam fogo em que tudo que se põe contra os seus interesses. O seu poder de sedação, entretanto, é cada vez menor. Já perceberam. Daí o desespero.

A história mais recente está mostrando que, provavelmente como em nenhum outro momento, os poderosos homens que julgam e dizem o que é certo e o que é errado também se puseram ao lado dos privilegiados e lhes oferecem as análises e julgamentos desejados. Devidamente trombeteados pela imprensa, os resultados desses julgamentos parecem apontar para mais uma vitória dos eleitos. Não, não é.

Muitos homens, alguns anonimamente, lutam diariamente contra essa força. Esses homens certamente fazem da frase de Darcy Ribeiro o seu lema: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.