Basicamente, graças aos achados de Ingle e colaboradores, a partir de 1962 passou a imperar o conceito de vedamento hermético no tratamento endodôntico. Os achados em questão se referem ao que ficou conhecido como Estudo de Washington, que dizia que os insucessos endodônticos tinham a sua origem nas obturações incompletas, por estas deixarem espaços vazios nos canais. Tornou-se uma crença.
É comum encontrar-se em textos didáticos, livros, por exemplo, citações comentando e corroborando esse “estudo”. Este foi encontrado em um site da Internet:
“Um canal radicular vazio, mesmo estéril, atua como verdadeiro tubo de ensaio coletando, em seu interior, líquidos teciduais e exsudatos inflamatórios oriundos da região circunvizinha ao ápice. Estes ao encontrarem ambiente propício à estagnação, facilmente se decompõem (ricos que são em proteínas, enzimas e sais minerais), gerando produtos tóxicos e irritantes aos tecidos da região, bem como propiciam ótimo meio de cultura para os microrganismos… Talvez, uma das mais completas pesquisas relacionadas ao assunto foi o Estudo de Washington, liderado por Ingle em 1962…”
Em 1965, portanto há 47 anos, Kakehashi, Stanley e Fitzgerald mostraram ao mundo que sem a presença da bactéria não haveria a formação de lesão periapical. Ninguém atentou, ou poucos o fizeram, para algo que se mostrava naquele momento: a necessidade da presença dos microrganismos para que houvesse lesão periapical negava a ideia de que “um canal radicular vazio, mesmo estéril”, poderia ser o fator determinante do insucesso, como afirmaram Ingle e colaboradores. Essa perspectiva que se abriu foi sendo confirmada ao longo dos anos.
Mesmo assim, não estariam ainda confirmadas a importância e a necessidade do vedamento hermético? Uma vez que os microrganismos seriam a causa das lesões periapicais, o seu enclausuramento não resolveria o problema? Isolados de qualquer fonte de nutrição, por um lado pela obturação hermética e por outro pelo cemento, o seu destino não seria a morte?
Muitos trabalhos de conclusão de cursos, monografias, dissertações, teses… já foram realizados “comprovando” a imprescindibilidade da obturação.
Perguntas bem simples: onde estão as evidências que confirmam a imprescindibilidade do vedamento hermético? Onde estão as evidências que comprovam a existência de vedamento hermético? Você falou o que? Não ouvi direito. Não há evidências? Se não há, por que os professores insistem em afirmar a necessidade de vedamento hermético (travamento perfeito do cone, “puff”, surplus…)?
Obturação 3D (existe obturação 2D?), blindagem…, por que até outros nomes são dados ao vedamento hermético, mas não se muda a concepção? Não é estranho que após tantos anos pesquisando este tema, sem nenhuma comprovação da existência de vedamento hermético, continua-se a ensinar a obturação como fator determinante do reparo? Por que ainda se insiste nessa ideia?
Chama a atenção a mais absoluta ausência de reflexão. Como querer mudar a qualidade do ensino se concepções como essa são as que reinam, são as que povoam as mentes que traçam os caminhos a serem seguidos pelos endodontistas?
Por outro lado, alguns artigos, ainda que não muitos, já mostram há algum tempo que, apesar do reconhecido avanço na qualidade dos materiais e técnicas de obturação, não houve melhora no resultado do tratamento endodôntico.
Trabalhos como o de Sabeti et al. (Sabeti MA, Nekofar M, Motahhary P, Ghandi M, Simon JH. Healing of apical periodontitis after endodontic treatment with and without obturation in dogs. J Endod. 2006 Jul;32(7):628-33) (clique aqui para ler), por exemplo, tentam mudar a forma de se conceber a endodontia.
Sabeti e colaboradores prepararam os canais de dois grupos da mesma forma. Em um grupo os canais foram obturados e no outro foram deixados vazios, sem obturação. Veja a que conclusão chegaram os autores:
“O achado importante deste estudo foi que não houve diferença na cura das lesões periapicais entre os canais instrumentados e obturados e os canais instrumentados e não obturados… Concluindo, o insucesso não ocorre pela falha da obturação, mas pela falha do preparo do canal”.
Desde o trabalho de Sabeti e colaboradores já se vão 6 anos. Por que não se investiga essa questão? Desde então, quantos trabalhos já foram e continuam sendo realizados falando de vedamento hermético, cimento X, cimento Y, obturações adesivas, infiltração de corantes (azul de metileno, rodamina B), transporte de fluidos, penetração de glicose…?
Precisaremos de mais 60 anos e uma quantidade infinda de trabalhos publicados sobre materiais/técnicas para entendermos que não é a obturação que assegura o reparo? Se há dificuldades em se aceitar essa possibilidade (vamos chama-la assim, por enquanto), por que ela não é pelo menos investigada?
Há pouco tempo os trabalhos sobre obturação dos canais que usavam infiltração como metodologia de pesquisa, particularmente aqueles com infiltração de corantes, foram “banidos” das revistas importantes, de maior impacto. Interessante. Como avaliar então? Métodos mais sofisticados estão sendo utilizados, como por exemplo, a análise por microscopia confocal. Um avan&cc
edil;o, sem dúvidas.
Em síntese, o que dizem os resultados? A análise por microscopia confocal mostrou que a técnica X obturou melhor o terço apical do que as técnicas Y e Z, porém nenhuma conseguiu vedar perfeitamente os canais, em todas havia falhas de selamento. Por sua vez, a técnica Y foi melhor do que X e Z no terço médio… O mesmo que já diziam os outros resultados com infiltração de corantes (azul de metileno, rodamina B), transporte de fluidos, penetração de glicose…
E aí?
Como tornar imprescindível para o sucesso algo que não existe? Além das evidências, o que falta? Bom senso.
É triste ver jovens (e mesmo velhos) professores fecharem os olhos (e os seus laboratórios) diante das evidências porque não atendem aos seus anseios e expectativas. Se autores consagrados estão preocupados com o não preenchimento das irregularidades dos canais, dos canais laterais e istmos, só tenho a lamentar por eles, autores. Se pudéssemos perguntar aos canais, eles diriam: “não, não estou preocupado com o meu preenchimento, estou preocupado com a minha limpeza e espero que vocês, endodontistas, entendam isso”.
Parece que atualmente há professores que começam a suspeitar que a obturação não é bem o que imaginavam. Depois de terem dedicado boa parte da sua produção acadêmica aos materiais/técnicas de obturação e desqualificado concepções contrárias ao pensamento geral, se nada foi feito para mudar o foco da atenção, o que ou quem terá chamado a atenção desses professores para só agora perceberem que a obturação não é bem o que imaginavam? De onde terá vindo essa inspiração?
Precisamos abrir os corações, as mentes (e os laboratórios) e pesquisar esse tema, mudar o foco. Precisamos entender que a Ciência, aquela com C maiúsculo, não está preocupada com quem publica. A Ciência está preocupada com o que é publicado.