Adoxografia

Elogio da Loucura

Por Ronaldo Souza

Há poucos dias me flagrei pensando em medalhas, comendas e certas homenagens que vejo serem prestadas.

Nunca escondi as minhas dificuldades com coisas desse tipo. Há sete anos cheguei a escrever um pequeno texto sobre esse tema.

Com pequenas modificações, eu o reescrevi e você pode ler aqui http://www.endodontiaclinica.odo.br/o-homenageado/.

Acho pouco provável que alguém pudesse ser mais feliz do que Aristóteles quando diz que “a grandeza não consiste em receber honras, mas em merecê-las”.

Uma vez ouvi o Prof. Humberto Castro Lima, fundador da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e homem de grande inteligência e cultura, dizer que já lhe era possível falar certas coisas porque a idade o colocara num patamar em que tudo, ou quase tudo, era permitido.

Ainda que não seja uma regra para todos, há sim um respeito que se adquire com a chegada da neve que tinge os nossos cabelos.

Entretanto, mesmo considerando-se a nenhuma convivência e as poucas vezes em que o vi falar, além dos cabelos brancos certamente o Prof. Castro Lima conquistou o direito de dizer quase tudo que lhe viesse à mente por outras razões e a sua trajetória está aí para confirmar.

Nos seus brilhantes discursos gostava de citar o “Elogio da Loucura”, livro de Erasmo de Rotterdam.

Enaltecendo o poder da retórica, a obra de Rotterdam se tornou um clássico da literatura universal e como tal exerceu grande influência, como por exemplo na arte da adoxografia.

Fernando Henrique Cardoso é a prova viva de que os cabelos brancos não permitem tudo.

Diria mais.

FHC em vários momentos

Fernando Henrique Cardoso é a negação da respeitabilidade que os cabelos brancos costumam trazer.

Há cerca de 10 dias, o jornalista e escritor Laurez Cerqueira escreveu um artigo cujo título era “Fernando Henrique carrega um general golpista dentro dele” (http://laurezcerqueira.com.br/488/florestan-fernandes-entrou-para-a-historia-pela-porta-da-frente-fernando-henrique-pela-porta-dos-fundos.html).

Transcrevo um trecho:

“No discurso de despedida de Fernando Henrique Cardoso, do Congresso Nacional, antes da posse para o exercício do seu primeiro mandato, estava no meio dos parlamentares, elegantemente vestido, sentado na cadeira de sempre, como um aluno disciplinado, já bastante debilitado pela doença hepática, segurando uma bengalinha, o Professor Florestan Fernandes, reeleito por São Paulo.

Fernando Henrique o viu no plenário. Pediu licença ao senador Humberto Lucena, que presidia a sessão, disse que quebraria o protocolo para cumprimentar uma pessoa.

Desceu os degraus do alto da Mesa, embrenhou-se entre os parlamentares que o assediavam calorosamente, postou-se frente ao mestre e o abraçou. Florestan desejou-lhe boa sorte e êxito no governo.

No final daquele momento, como que movido por um lampejo de confiança no ex-aluno, Florestan disse a Fernando Henrique: “Veja bem, Fernando: não crio gatos. Crio tigres”.

Disse isso sob forte emoção, certamente lembrando-se de que ele teria sido um dos professores mais influentes na formação acadêmica dele…

… Florestan teve uma conversa impactante com ele, falou sobre a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, sobre o curso de sociologia, e da importância de se formar sociólogos nas nossas universidades para ajudar nos estudos, nas pesquisas, sobretudo no desenvolvimento do pensamento e na interpretação do Brasil pelos próprios brasileiros.

Foi com base nessa conversa que Fernando Henrique decidiu fazer o exame para cursar sociologia na USP. Florestan foi professor dele, orientador no mestrado e no doutorado.

Ficaram tão amigos que Fernando Henrique mudou-se para a mesma rua que morava o mestre para conviver, frequentar a biblioteca e ouvi-lo mais. Florestan o tinha em alta consideração fraterna e intelectual.

Aquele momento de despedida de Fernando Henrique  foi marcante para Florestan, mais marcante ainda a decepção com o rumo dado por ele ao governo, que apenas se somou a outras decepções políticas acumuladas ao longo da carreira do ex-aluno presidente. Mas nada disso abalou a relação pessoal e o respeito que tinham um pelo outro.

Em 1996, Fernando Henrique havia dado um golpe na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que estava sendo debatida na Câmara, sob a coordenação do então deputado Florestan Fernandes, com apoio do Fórum Nacional de Educação.

Numa articulação comandada pelo seu vice-presidente Marco Maciel, ele aprovou no Senado o projeto de lei do governo tornando regimentalmente prejudicado o projeto de LDB da Câmara, que acabou sendo arquivado.

Esse fato deixou Florestan indignado e decepcionado, por ter sido colocado por terra anos de debate e de construção democrática, com a participação da sociedade, de uma proposta de educação que provocaria uma transformação profunda no país.

Dias depois, numa conversa sobre o golpe da LDB, ele sentado, tirou os óculos de hastes e lentes grossas, colocou-os sobre a mesa, passou os dedos nas sobrancelhas de fios compridos, e disse, referindo-se a Fernando Henrique, com todo o cuidado que tinha no trato com as pessoas: “É… Fernando está ficando politicamente irreconhecível”.

Não sei quantos sabem que FHC é filho de general, o que não quer dizer nada e que também nada tem a ver com o título do artigo de Cerqueira.

O título se reporta a outra coisa.

Trata de um homem que já algum tempo eliminou qualquer possibilidade de dúvida que ainda existisse sobre o que significa de fato o “esqueçam tudo que eu escrevi”.

Não há mais limites.

As histórias de traição de FHC às coisas e pessoas sérias que conviveram com ele são conhecidas.

Um dos seus ministros mais respeitáveis, o professor Adib Jatene, já disse mais de uma vez para quem quis ouvir que ele não cumpriu a palavra com ele. Uma das vezes em que isso ocorreu foi no programa Canal Livre, da Band.

FHC é hoje um dos poucos homens que conseguem falar de democracia e golpe na mesma frase com tamanho despudor que os fazem parecer sinônimos.

Ah, quase esquecia.

Adoxografia – Enaltecimento desmerecido sobre algo ou alguém; elogio imerecido.

É a “arte” de se fazer o elogio imerecido de pessoas ou coisas sem valor, pessoas vulgares.

A mídia brasileira se tornou um ícone na arte da adoxografia.