Blow-up *
Conheço um pouco de Salvador. Vivi a juventude numa época em que ainda se andava pelas suas ruas a qualquer hora, em qualquer dia. Foram muitos momentos, muitas histórias, muitas experiências, vividas com intensidade, que fizeram de mim o homem que só eu conheço, e respeito.
Tinha uns 16 anos. Naquela época costumava sair com um primo no carro do pai dele para “pegar mulher”. Numa dessas tardes de domingo (parece até música da “Jovem Guarda” – os com mais de 40 anos sabem do que estou falando), não pegamos ninguém. Dia perdido, ocorreu-nos ir ao cinema. O horário, final de tarde, não oferecia muitas opções e fomos, meio a contra-gosto, ao Cinema de Arte.
Como vocês não sabem que cinema é esse (será que alguém aí lembra?), deixe-me dizer onde era. Ficava naquela rua, que não sei o nome, sou péssimo para isso, atrás da rua do Cine Liceu. O que! Nem esse vocês conhecem? Não acredito. Pois é, dia perdido, caçador sem caça, vamos lá.
Como o nome diz, Cinema de Arte é um cinema que passa filme de arte, portanto, com poucas chances de agradar a um garoto de 16 anos. Chegamos lá, sessão iniciada, não tem jeito, só tem esse, vamos ver esse. Hoje, iríamos a um shopping, cada um tem trezentos cinemas, trezentos filmes para assistir, sem problema. Aliás, tem sim; não tem um que preste.
Vamos voltar ao nosso Cinema de Arte. Entramos e começamos a assistir ao filme. Não, não era filme para um garoto de 16 anos que tinha saído para pegar mulher, tanto que meu primo, um pouco mais velho do que eu, detestou. Mas, estranho, o filme foi me prendendo, prendendo…
Quando terminou a sessão o meu primo estava doido para sair e eu disse que queria ver a parte inicial que tínhamos perdido; ele não acreditou. É verdade, quero ver a parte inicial. Ficamos. E vi.
O filme era Blow-up. O nome é esse mesmo, ele não teve tradução para o Português (acrescentaram um “Depois daquele beijo”). De Antonioni, um dos diretores consagrados do cinema. Naquela tarde de domingo, o menino de 16 anos começava uma relação diferente com o Cinema.
A partir desse dia, filmes como Morangos Silvestres (Bergman), Amarcord (Felini), A Bela da Tarde (Bunnel), Cinema Paradiso (Tornatore), este bem mais recente, criaram em mim gosto pelo cinema que mostra muito mais do que violência, sexo e efeitos especiais.
Foi uma tarde de domingo especial para a vida daquele garoto de 16 anos.
* Esse texto estava pronto há cerca de 10 dias antes das mortes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni e não foi alterado em função desses acontecimentos. Fica agora como uma homenagem póstuma a dois grandes cineastas, que se preocuparam e mostraram com competência o homem, com as suas angústias e aflições, mas, sobretudo com a dignidade de quem busca entender e melhorar a raça humana.