É chavão dizer-se que o “endodontista não vê o que está fazendo”, o que lhe traz sérias limitações quanto ao real conhecimento e domínio do seu campo de ação. Portanto, mesmo uma Endodontia “bem feita” pode encontrar limitações nos resultados desejados e esta parece ser uma realidade de difícil digestão. Mesmo que tenhamos dificuldades para entender e aceitar, as limitações no tratamento endodôntico não são poucas. Pode-se contra-argumentar com os altos índices de sucesso relatados pela literatura, porém, ao mesmo tempo, como, diante deles, explicar a grande quantidade de retratamentos de canal?
O processo de instalação e disseminação da necrose e infecção não parece ser muito rápido. Uma necrose sem lesão periapical é um reflexo do pouco tempo de instalação desse processo e que, por isso, não teria ainda se manifestado através da rarefação óssea periapical; o fator tempo desempenha papel fundamental. Assim, fica difícil interpretar a inexistência da lesão periapical como uma expressão da ausência de infecção do sistema de canais ou do grau de infecção existente nele.
A literatura registra de maneira clara o menor percentual de sucesso dos tratamentos endodônticos dos casos com lesão periapical em relação a aqueles sem lesão. Isso deve significar que há diferenças na capacidade de se exercer controle de infecção nas duas situações, expressando nitidamente uma maior dificuldade nos casos com lesão. Como, provavelmente, a maior causa disso, a complexidade anatômica do sistema de canais impede o acesso dos “instrumentos cirúrgicos endodônticos” a determinadas áreas, o que tem como consequência maior o favorecimento da permanência de alguns microrganismos e seu substrato no sistema de canais.
Tendo em vista a aceitação de que a completa eliminação dos microrganismos do sistema de canais é pouco provável, um dos argumentos a favor da sessão única é o enclausuramento daqueles remanescentes proporcionado pela obturação hermética, por muitos também chamada de tridimensional.
Seja hermética ou tridimensional o nome que se queira dar à obturação, não tem sido demonstrado na literatura que ela, de fato, proporciona o isolamento desses microrganismos residuais dos “meios externos” (cavidade oral e tecidos periradiculares). Assim, a impossibilidade de atribuir à obturação tridimensional a condição de vedar hermeticamente o sistema de canais faz pensar em medidas que possam contribuir para um controle de infecção o mais efetivo possível.
Como foi dito acima, é consensual a inviabilidade da eliminação dos microrganismos pela instrumentação do canal. O impacto que esse “resíduo de bactérias/substrato” trará ao processo de reparo é imprevisível. É importante que se entenda que esse aspecto não pode ser observado somente sob a ótica mecânica do alargamento e vedamento. O combate aos microrganismos é revestido de uma complexidade maior e por isso talvez não permita abordagens simplistas. Aí entram fatores como o hospedeiro, tipo de microrganismos, condições em que habitam o sistema de canais, etc.
No preparo do canal há uma ação mecânica (instrumentação) e outra físico/química (irrigação/aspiração) que, juntas, têm um objetivo; controle de infecção. Deve-se entender que a medicação intracanal representa mais um mecanismo nesse sentido; um complemento importante, mas um complemento. Se houve exageros na interpretação do seu papel, também há agora na sua rejeição absoluta.
Alguém já definiu qual a concentração ideal em que se deve usar o hipoclorito de sódio para todos os casos? Ela existe? Alguém sabe qual é o antibiótico ideal? Ele existe? Mais perguntas se impõem. É possível dar a última palavra para essas e outras questões nas ciências da saúde? Será que as particularidades de cada paciente ou, fechando mais ainda, de cada caso, permitem uma visão única e, o que é pior, permitem uma abordagem que vem se tornando um compromisso, um objetivo?
São conhecidas as dificuldades técnicas inerentes ao retratamento, mas ouve-se cada vez mais falar-se de retratamento de canais de molar com lesão periapical em sessão única como algo rotineiro. O que é retratar um canal? Considerando somente os canais retos e/ou sem desvios, seria somente desobturar e reobturar, ou seja, trocar uma obturação por outra, possivelmente mais bonita? Retratar é fazer um novo tratamento, é fazer o que não foi feito, não é reobturar. Você só retrata canais retos? Por acaso, quando você retrata um molar encontra sempre os mesiais do molar inferior e os vestibulares do superior sem nenhum desvio? Você sai desses desvios e retoma o canal com os instrumentos rotatórios, que não aceitam pré-curvamento, ou manualmente com os de aço inoxidável pré-curvados? Quanto tempo leva isso em todos os molares? Você está lembrado que a literatura acusa um menor percentual de sucesso para o tratamento endodôntico de canais com lesão periapical? Por que será? Dificuldade maior de controle de infecção. O que você acha mais fácil, tratar ou retratar um molar? Em que situação deverá ser mais fácil conseguir controle de infecção, no tratamento ou no retratamento do molar com lesão periapical? Em que situação a solução irrigadora desenvolverá melhor a sua ação antimicrobiana nos túbulos dentinários e canais laterais, em outras palavras, no sistema de canais, nas paredes dentinárias “limpas” de um tratamento ou naquelas ainda “obstruídas” por resíduos da obturação anterior, tão comum nos retratamentos, conforme demonstra a literatura e pode observar qualquer endodontista com relativa experiência?
Há reparo das lesões periapicais com a Endodontia em sessão única? É claro que sim. Deve-se entender que para haver reparo basta simplesmente controle de infecção e o preparo do canal faz isso. O organismo está apto a combater qualquer patologia. Ele dispõe de mecanismos fantásticos para isso. Quando, por razões diversas, o sistema imune não consegue debelar uma patologia, o médico recorre a medidas complementares, como o uso de antibióticos por exemplo. O antibiótico, via circulação sanguínea, chega ao local da infecção persistente e, juntamente com o sistema imune, combate-a.
Vamos estabelecer uma situação análoga na Endodontia. O preparo do canal (controle de infecção) e a obturação logo em seguida (sessão única) são realizados. Digamos que o reparo não ocorra (você já viu vários tratamentos “bem feitos” com lesão periapical, não é mesmo?). Tal qual o médico, o endodontista recorre então à medida complementar, o antibiótico, e aí a lesão não repara. Por que? Nem o sistema imune nem os antibióticos “entram” no sistema de canais de dentes tratados endodonticamente para combater a infecção persistente. Não há circulação sanguínea para leva-los. A medida complementar, que funciona tão bem na Medicina, não funciona na Endodontia.
Você concorda comigo se eu disser que no caso acima o preparo do canal (instrumentação e irrigação) não foi suficiente para que houvesse controle de infecção? Entra aí, com apoio da literatura e dos resultados clínicos, a medicação intracanal com uma ação antimicrobiana complementar à da instrumentação/irrigação. Dispõe-se de mais um passo, mais um recurso, na busca de um melhor controle de infecção. Não parece uma medida insensata.
No artigo que publiquei no JBE em 2003 (Tratamento endodôntico em sessão única – Uma análise crítica) clique aqui para ler eu já dizia que “a realização da Endodontia em sessão única não deve ser considerada algo fora de propósito…” e que “a Endodontia caminha cada vez mais na direção de procedimentos com o devido respaldo científico e, por isso, acreditamos que não deve haver radicalismo contra ou a favor da Endodontia em sessão única”. Deve ser lembrado que até bem pouco tempo a sessão única era proibida na polpa viva, postura que não se justifica cientificamente. É possível adotar esse procedimento também nos casos de necrose pulpar, estejam eles sem ou com lesão periapical. Mas, também é possível que as evidências científicas e as alternativas clínicas de tratamento atuais, e este é um aspecto de importância fundamental, ainda não sejam suficientes para respaldar inteiramente essa conduta como rotina. Apesar de não preconizar, respeito a concepção, mas somente quando colocada com um mínimo de embasamento científico, e não é o que tenho observado muitas vezes.
Você já viu uma radiografia periapical com o tratamento de canal mais bonito do mundo com uma lesão periapical? Como explicar aquele insucesso? Digo sempre que a coisa mais fácil do mundo é explicar porque determinada terapia deu certo. Não deve ser tão fácil explicar porque não deu. Quantos podem dar essa explicação? A ignorância ativa ganhou corpo nesses últimos tempos.
Falta-nos frequentemente humildade para reconhecer que ainda há um desconhecimento científico muito grande. A minha recomendação, e a do grupo do qual faço parte, tem sido no sentido de que nos casos de necrose pulpar com lesão periapical o tratamento endodôntico não seja feito em sessão única. Perceba que em nenhum momento falei na quantidade de casos que dão certo com qualquer uma das terapias, argumento bastante utilizado. Para falar disso também teria que me reportar à quantidade de casos que não dão certo, aliás, questão sobre a qual ninguém fala. Precisamos entender que a discussão vai além disso.
Devíamos respeitar mais a individualidade de cada ser humano e, por conseqüência, de cada profissional. Recém-formados, clínicos, especialistas, profissionais mais experientes, todos, não se comportam de maneira igual; cada um tem o seu tempo. Que se permita isso. Estamos privilegiando o tempo em que é feito e não como é feito. É a técnica acima do conhecimento, é a arte acima da ciência. Deveriam estar lado a lado. A Endodontia em sessão única, como qualquer outro procedimento endodôntico, pode, deve e precisa ser discutida sob as luzes da pesquisa e da clínica. Lamento, mas há algum tempo não é assim. Para muitos virou peça de marketing.
Endodontia se faz com olhos, coração e mente abertos. Além disso, técnica, conhecimento e bom senso.