Chico Buarque

Moro em Salvador desde os 11 anos de idade. Em todas as férias escolares lá íamos nós, eu, meus irmãos e minha mãe, para minha querida Juazeiro (Bahia). Por conta do trabalho, meu pai não podia ir e ficava em Salvador.

Acredito que com cerca de 15 anos de idade, já ensaiando os primeiros passos da adolescência e descobrindo o mundo que se descortinava à minha frente, comecei a me ligar mais às coisas de Salvador, e passei a fazer companhia a meu pai nas férias.

Como minha mãe continuava indo com os meus irmãos, o café da manhã e da noite eram em nossa casa, o almoço não. Almoçávamos, eu e meu pai, na casa de “Seu” Otto, que fazia da casa uma pensão só para as pessoas de sua cidade, Juazeiro.

Sempre que chegava para o almoço na casa de “Seu” Otto tinha uma música esquisita tocando em alto volume e aquilo me incomodava. Era principalmente de um dos seus filhos, Osmar, arquiteto sem diploma, contemporâneo de meu irmão mais velho.

Para a minha geração era Elvis Presley, Renato e seus Blue Caps, Roberto Carlos, The Beatles e outros tantos. Aquela música estranha, feia, barulhenta, ia entrando a cada dia pelos meus ouvidos, e ficando. Lembro muito bem, particularmente do 2 na Bossa, LP (era assim que se chamava) de Jair Rodrigues e Elis Regina.

Foi um caminho maravilhoso, e sem volta, para a música brasileira. Eram tantos que começavam a surgir. Os famosos festivais da Record, Caetano, Gil, Edu Lobo, Dori Caymmi, Milton Nascimento, Ivan Lins/Vitor Martins, João Bosco/Aldir Blanc, muitos.

E Chico Buarque.

Nessa época, estávamos sob o regime da ditadura militar. Período difícil, negro. Garoto, eu não sabia o que era, mas aos poucos ia conhecendo um outro mundo. O medo, a delação, um horror.

Fora os comunistas, comunista come criancinha. Meu pai, um homem simples, um comunista. Não pode ser, meu pai não come criancinhas. Por que então os livros jogados fora, às escondidas? Se é, então não é o que dizem. Começava a entender que o que dizem tem muitos sentidos, há sempre um outro significado por trás do que dizem.

Fora os comunistas, comunista come criancinha. Não pode ser verdade. Como pode alguém ser tão perverso, comer criancinhas, e fazer músicas como Com açúcar, com afeto. Como pode um comunista ser isso e cantar Carolina, Januária, que coisa ridícula.

Ali estava um comunista, que comia criancinhas, e cantava a mulher como nenhum outro compositor conseguiu. Uma sensibilidade que a cada dia se manifestava com mais força.

1. Até pensei

Junto a mim morava a minha amada
Com olhos claros como o dia
Lá o meu olhar vivia
De sonho e fantasia
E a dona dos olhos nem via


2. Te amo

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu


3. Pedaço de mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Viva os comunistas.

Em defesa dos colegas, disse muitas vezes que não se deve cobrar posições políticas do artista. Concordo. Mas, quando alguém é o que ele é como artista, talento e sensibilidade insuperáveis, e consegue ter a consciência político/social que ele tem, esse alguém é único.

Chico Buarque de Holanda é uma página especial, à parte, no cenário brasileiro.

No dia do seu aniversário (19/06/2010), veja o que uma mulher escreveu sobre ele (clique aqui).

E veja aqui as suas músicas.