Entendendo a irrigação

Este texto tem origem no interessante comentário feito pela nossa colega Renata, reportando-se a uma orientação que dei em resposta a Kayte Botelho no Blog da Endodontia (veja aqui). Ela diz:

observei na conduta sugerida à colega que o senhor usa soro fisiológico como solução irrigadora.Durante o meu curso de especialização essa prática foi desencorajada com base em uma pesquisa orientada pelo prof. Siqueira jr. que demonstro que na grande maioria dos soros usados pelos cd havia contaminação por salmonela, o que contribuiria nos inssucessos do tratamento. O que o senhor acha disso?

Não sei quantas vezes você já ouviu ou leu que os aspectos físicos da irrigação (volume, frequência) são mais importantes do que os químicos. Não é verdade. Irrigar o canal pode e deve ser observado sob os aspectos físicos e químicos.

É comum sugerir-se que a agulha irrigadora deve trabalhar próximo do comprimento de trabalho (CT) para, cumprindo uma recomendação de natureza física, promover fluxo/refluxo e assim, por arraste, remover o conteúdo do canal. Não há dúvidas de que é um procedimento bem interessante, mas talvez haja algo mais a se considerar.

Se você estiver fazendo um tratamento endodôntico em canal com polpa viva, não são tantas as situações em que a agulha irrigadora irá penetrar até próximo do comprimento de trabalho, por duas razões: 1. como o canal ainda não foi preparado (ampliado), o espaço é reduzido e 2. a polpa “ainda” está lá ocupando esse espaço. Se for um tratamento de canal com polpa necrosada, a polpa não está mais lá, restando, portanto, somente a questão do espaço. O canal ainda precisa ser ampliado para se promover a irrigação desejada. Porém, mesmo que haja esse espaço (um canal amplo), não parece recomendável esse tipo de irrigação porque existe a possibilidade de, ao se fazer uma irrigação mais ativa, parte do material do canal (lembre que é um canal com polpa necrosada e infectada) pode ser projetada para os tecidos periapicais, aliás, o que não tem sido tão incomum, e a prova disso são os casos de agudização.

Assim, até que essas duas condições sejam alcançadas (ampliação do canal e remoção da polpa, ou do que resta dela), nos momentos iniciais do preparo do canal poucas vezes será possível irrigar o canal “farta e copiosamente” (como a literatura gosta de dizer), porque a agulha irrigadora não chegará facilmente próximo do comprimento de trabalho (uma questão de espaço físico). Assim, o aspecto físico da irrigação não é atingido de imediato desde o início do preparo do canal. Por essas e outras razões, enquanto se prepara o canal, é fundamental recorrer-se às propriedades químicas das substâncias.

Assim, as soluções irrigadoras vão sendo depositadas (irrigação passiva) e as suas ações  (solvente, neutralizadora, antimicrobiana, lubrificante, de aumentar a permeabilidade dentinária) vão se dando, permitindo a ampliação do canal e remoção do seu conteúdo, o que as faz serem conhecidas como substâncias químicas auxiliares do preparo do canal. Perceba que nesses momentos as características químicas exercem papel fundamental e sobrepujam a ação física, haja vista que esta ainda não seria plenamente possível, ou sofreria algumas limitações.

Uma vez que o preparo do canal vai sendo realizado, vai-se removendo o seu conteúdo, cria-se maior espaço para a penetração da agulha irrigadora e maior segurança para o fluxo/refluxo, tendo em vista que o conteúdo terá sido parcial ou totalmente removido. Mesmo assim, sugiro cautela. Não só a projeção para os tecidos periapicais do conteúdo infectado do canal pode trazer problemas. Também a passagem das soluções irrigadoras apresenta esse potencial, ainda mais considerando-se a mais utilizada delas, o hipoclorito de sódio.

Ao final do preparo do canal, o conteúdo do canal terá sido removido e as condições para o fluxo/refluxo estão criadas. Este também é um momento importante e precisa ser melhor entendido. Nesta hora ainda há resíduos em suspensão no canal. Deve ser feita então uma irrigação “farta e copiosa” com a agulha posicionada próximo do CT. O que usar? Muitos professores sugerem faze-la com o próprio hipoclorito de sódio. Perfeito.

Vamos, juntos, pensar no seguinte. Agora que o canal está “vazio”, se você deseja, e deve, remover por arraste todo o seu material residual, tirar proveito do fluxo/refluxo, ao fazer a irrigação dessa maneira, não haveria alguma chance de o hipoclorito de sódio passar para os tecidos periapicais? Se considerarmos que muitos professores já preconizam patência e limpeza do forame, veremos que um forame desbloqueado favorece essa ocorrência.

Talvez possamos deduzir o seguinte. Há dois momentos distintos da irrigação. Em um, mais do que na ação física nos apoiamos nas propriedades das substâncias químicas (auxiliares do preparo), e no outro na ação física de arraste, de remoção, de lavagem final. No primeiro momento, o uso de soluções irrigadoras como soro fisiológico, água destilada… não faz sentido. No segundo, o uso dessas soluções parece trazer maior segurança, diante da eventual passagem para os tecidos periapicais.

Trabalhos mostram que algumas marcas de hipoclorito de sódio não são confiáveis, por conterem impurezas, não apresentarem a titulação indicada… Cabe então escolher as que oferecem maior segurança, mas não só isso. As condições de uso e armazenagem também exercem grande importância. Ainda mais, alguns autores estabelecem restrições ao uso dessas soluções em alguns casos, também a depender da sua concentração. Assim, da mesma forma que o hipoclorito de sódio encontra restrições e limitações no seu uso, outras soluções irrigadoras também o fazem.

Todas as substâncias utilizadas em Endodontia devem ser de boa procedência. Assim também deve ser com as soluções irrigadoras. Utilizamos a mesma solução fisiológica de uso hospitalar, o que deve dar um pouco mais de tranqüilidade. Soluções utilizadas e guardadas podem se tornar “meios de cultura”, razão pela qual sempre que recebem
os novas turmas, os alunos estranham a nossa recomendação de descartar o que restou após o uso dessas soluções, elas não devem ser guardadas para uso posterior.

Finalmente, não preconizo o soro fisiológico no “momento químico” do preparo do canal, somente no final para ação física de, como gosto de dizer, lavagem final. Nessa hora não vemos necessidade de ação química, já tiramos proveito das propriedades das substâncias químicas auxiliares durante o preparo do canal. Desejamos somente promover arraste do conteúdo residual. Pelas razões já expostas, optamos pelo soro fisiológico.

Permitam-me sugerir a leitura de um artigo:

SOUZA, R. A. Limpeza Química do Sistema de Canais – Um Capítulo Especial na Endodontia. JBE, v. 5, n. 21/22, p. 454-463, 2005.

Também no livro Endodontia Clínica (veja aqui) esse tema pode ser visto em maiores detalhes.