Cotas de TV e a contrarrevolução da Globo: um avanço estagnador
Por Emanuel Júnior, em seu blog
Quebrar paradigmas é um ato revolucionário. A entrada do Esporte Interativo na disputa pelos direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro na TV fechada foi, portanto, o ato mais revolucionário do futebol brasileiro nos últimos anos: sua proposta representa uma profunda transformação do contexto atual no mercado do esporte mais popular do Brasil.
Ameaçada, a Rede Globo partiu para o contra-ataque. Ou seja, desencadeou sua própria contrarrevolução, no intuito de frear os avanços da investida de sua concorrente.
Não é por acaso que, pela primeira vez, a empresa que até hoje monopoliza os direitos de transmissão do futebol nacional decidiu propor aos clubes um modelo de divisão das “cotas de TV” menos desigual.
O formato proposto pela Globo, semelhante ao da Itália, entretanto, representa um avanço estagnador. Isso porque ao mesmo tempo em que não promove uma igualdade tão ampla quanto à divisão da Inglaterra, tem o efeito danoso de travar um movimento coletivo dos clubes. Ou seja, é uma reforma e não uma revolução.
Em “Algumas propriedades dos campos”, Pierre Bourdieu mostra que em um campo se encontram relações de poder.
O que implica dizer que há desigualdade e que dentro de cada campo existem lutas entre aqueles que pretendem garantir sua participação e a classe dominante que busca manter a ordem e sua supremacia.
No campo do mercado do futebol, como demonstro em meu livro “Cotas de televisão do campeonato brasileiro: apartheid futebolístico e risco de espanholização”, também se verificam estas lutas.
E se há clubes que pretendem garantir sua participação e outros que pertencem a uma classe dominante e, portanto, procuram de todo o modo manter o poder desportivo (através da obtenção de maiores recursos financeiros), o mesmo se aplica na disputa pelos direitos de transmissão.
O Esporte Interativo busca se tornar sujeito ativo deste mercado, enquanto a Rede Globo trata de assegurar seu status dominante.
Envolto a mistérios quanto aos valores, com suas cláusulas de confidencialidade que tiram da esfera pública o direito ao conhecimento dos reais contornos dos acordos (vamos ao tema logo adiante), um outro ponto negativo da contrarrevolução reformista da Globo, além do obscurantismo das negociações, é a premissa individualista e não coletiva de sua investida.
Em “Cotas de televisão do campeonato brasileiro…”, eu argumento que é a negociação coletiva que se aproxima mais do ideal de “cooperação social” preconizado por John Rawls.
Afinal, é através da negociação coletiva que se pode obter um acordo em que haja “vantagem mútua” entre todos envolvidos.
Desde que a divisão dos recursos trate todos intervenientes de modo equitativo, não permitindo “que alguns tenham mais trunfos do que outros na negociação”. Os clubes brasileiros, infelizmente, estão divididos e seguem negociando cada um por si as vendas dos direitos de transmissão, o que enfraquece, por conseguinte, o todo.
Somada à falta da busca pelo fortalecimento coletivo dos clubes, a ausência de transparência nas negociações – traço que, infelizmente, domina o mercado da comunicação (vide o recente escândalo da Fifa, que envolve, exatamente, as vendas de direitos de transmissão) – evidencia o caráter conservador (de quem busca conservar seu status quo) da empresa que monopoliza atualmente o mercado.
Quais os valores envolvidos nas negociações da Rede Globo com os clubes? Em nome da “confidencialidade”, ninguém sabe.
Immanuel Kant escreveu que “todas as ações relativas aos direitos de outros homens, cuja máxima não é suscetível de se tornar pública, são injustas” (Resposta à pergunta: “Que é o Iluminismo?”).
Injustas porque retira, ao que Jürgen Habermas viria a denominar de “esfera privada do público”, o direito de conhecer as informações. Afinal, para que a “opinião pública” possa discutir e criticar os atos que lhes dizem respeito, é preciso que haja publicidade dos debates.
O argumento de que se trata de relações privadas não se sustenta. Primeiro porque os clubes de futebol não são empresas privadas, mas sim associações – ou seja, pertencem aos seus quadros de sócios e a eles têm a obrigação de revelar suas movimentações financeiras.
Segundo, porque as televisões são concessões públicas, ou seja, prestadores de serviços públicos (Art. 21, XI e XII; Art. 223, ambos da Constituição da República de 1988).
Como vivemos em um sistema republicano e democrático (e não oligárquico, como a relação do futebol brasileiro faz parecer), aqueles que gerenciam dados do interesse da coletividade não são os detentores destas informações, mas sim a “esfera pública”.
O pouco que sabemos dos valores envolvendo as negociações da Rede Globo com os clubes chega à “opinião pública” através de sua concorrente, o Esporte Interativo.
Este último, por sinal, adota uma postura republicana que merece ser exaltada, ao trazer para o mercado do futebol brasileiro uma prática até então pouco vista: a de tratar suas discussões com total transparência, permitindo aos torcedores – interessados diretos – o acesso às informações necessárias para formularem seus posicionamentos acerca do tema.
E neste contraste entre o “poder visível e o poder invisível” (Norberto Bobbio), é o Esporte Interativo que nos traz o iluminismo, clareando as trevas que nos afasta do conhecimento de parte dos negócios.
Foi este canal que nos revelou, através de nota pública, que a proposta da SporTV (Globo) para os direitos da TV fechada é de R$ 98 milhões, apenas 18% dos R$ 550 milhões oferecidos pelo próprio Esporte Interativo.
A oferta do Esporte Interativo apenas para a TV fechada, por sinal, corresponde a 65% dos R$ 840 milhões que a Globo deve pagar aos clubes pela transmissão da TV aberta do Campeonato Brasileiro de 2016.
O que se sabe, também, é que a Globo ofereceu um bônus aos clubes. Mimo que, segundo o próprio Esporte Interativo e alguns dirigentes (como o presidente do Sport, Humberto Martorelli, em almoço com a imprensa pernambucana), seria coberto pela concorrente.
O que, portanto, justifica os clubes aceitarem um acordo com a Rede Globo? Segundo matéria do UOL, alguns cartolas temem uma eventual retaliação da Globo no futuro. Aqueles que não negociarem seus direitos da TV fechada com a SporTV sofreriam uma possível redução no valor de um contrato futuro pela TV aberta, bem como poderiam “sumir da grade de programação” da emissora carioca. Mas, isto faz algum sentido?
Alguém realmente acredita que a Globo assumiria o risco de não poder mostrar uma partida decisiva do Campeonato Brasileiro envolvendo, por exemplo, Internacional (que negocia com o Esporte Interativo) e Corinthians?
Entretanto, é interessante notar como grandes associações de massa deste país, representantes da maior paixão do povo brasileiro, temem uma emissora de televisão. E se existe o temor, é porque os dirigentes dos clubes – pelas décadas de relação entre o canal de TV e o futebol nacional – devem ter plena consciência de como a Globo se comporta. O que denota, no mínimo, um caráter pouco republicano e democrático, ao não aceitar conviver com a livre concorrência – fundamento básico de um Estado Democrático de Direito Liberal.
Dúvidas que só são suscitadas, a propósito, devido à falta de transparência nos valores que envolvem os negócios.
Do “risco de espanholização” à “italianização”
Em entrevista à ESPN Brasil logo após a aprovação do acordo do São Paulo com a Rede Globo por parte do Conselho Deliberativo tricolor, o vice-presidente do clube, Ataíde Gil Guerreiro, comemorou o que classificou como uma divisão “mais racional”, igual ao “modelo inglês”. O dirigente são-paulino, entretanto, equivoca-se quanto à inspiração do formato de divisão das cotas.
Segundo o próprio: 40% igual entre os clubes, 30% pelo mérito esportivo e 30% de acordo com a exposição na TV.
Essa divisão se assemelha mais ao da Serie A italiana do que a da Premier League inglesa.
E está aí o ponto fulcral que torna este acordo um avanço (claro que sim), mas um passo curto se comparado ao que é proposto pelo Esporte Interativo (este sim “inglês”, com seus 50% iguais, 25% pelo mérito e 25% de acordo com a audiência). Ou seja, passamos do “risco de espanholização” à “italianização” do futebol brasileiro.
No já citado “Cotas de televisão do campeonato brasileiro…”, eu recordo o caso da Serie A italiana e do relatório da autoridade antitruste do país, de 2007.
“Na Itália, entre 1999 e 2011, os clubes estiveram livres para negociar os direitos de televisão individualmente. Preocupado com o desequilíbrio orçamentário entre os clubes da Serie A, o Ministério do Esporte italiano determinou que as cotas de televisão voltassem a ser negociadas coletivamente. Em janeiro de 2007, a autoridade antitruste da Itália recomendou, em um relatório de 170 páginas, que o sistema de negociação coletiva fosse utilizado novamente para garantir maior competitividade ao campeonato italiano. Foi necessária uma intervenção estatal, via Ministério do Esporte, para que se procurasse um modelo de negociação coletiva com regras estabelecidas para uma divisão mais equânime destes recursos.”
Na Itália, entretanto, a divisão ficou: 40% igual entre todos, 30% pelo mérito esportivo e 30% baseado no tamanho da torcida (em “Cotas de televisão do campeonato brasileiro…” específico os detalhes).
Por não dividir metade do valor integral de forma igualitária entre todos os clubes, a Serie A italiana se tornou – após o Real Decreto-ley5/2015 espanhol – a liga europeia mais desigual entre as cinco maiores (em faturamento) competições nacionais do Velho Continente.
Na Premier League inglesa, por exemplo, os valores obtidos pelas vendas para o mercado externo (£3 bilhões) são distribuídos de forma 100% igualitária, já o montante auferido das negociações para o mercado interno — £ 5,136 bilhões é o que a Sky Sports (£4.2 bilhões, por 126 jogos ao vivo) e BTsports (£960 milhões, por 42 jogos ao vivo) vão pagar a partir de 2016/17 –, são distribuídas de acordo com três critérios: 50% divididos igualitariamente entre todos os clubes; 25% baseados na classificação final da temporada anterior (o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que recebe o último clube da lista); 25% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão.
Na Espanha, o Real Decreto-ley 5/2015 passou a regulamentar a negociação centralizada dos direitos televisivos. E a distribuição passou a ser da seguinte forma: 50% igualitariamente entre todos os clubes; 25% levando em consideração os rendimentos desportivos nas últimas cinco temporadas; 25% dividido em duas partes – um terço será determinado pela média de vendas de bilhetes e lugares anuais nas últimas cinco temporadas e outros dois terços correspondentes à participação de cada clube na geração de recursos na comercialização dos direitos de transmissão.
E o que isto representa na prática? Vejamos, abaixo, a diferença entre o topo e o fundo da tabela das cinco ligas de maior faturamento na Europa e do Brasileirão.
Inglaterra – 1,5:1
Alemanha – 2:1
Espanha – 3:1
França – 3,8:1
Itália – 4,8:1
Brasil — 6,5:1
Podemos concluir, portanto, que enquanto a proposta do Esporte Interativo buscava nos aproximar do modo de distribuição dos recursos mais equânime que existe, que é o modelo inglês, o acordo que a Rede Globo tem celebrado com os clubes (pelo pouco que se é permitido chegar à opinião pública) nos coloca mais perto do que acontece na Itália, que após o Real Decreto-ley espanhol passou a ser a liga mais desigual entre as maiores da Europa.
Em suma, o novo acordo da Globo além de ainda seguir encoberto pela bruma da “confidencialidade”, carecendo de maior transparência para uma melhor avaliação, representa um avanço estagnador.
Avanço porque deverá diminuir a desigualdade de 6,5:1 para algo perto de 4,5:1. Estagnador porque se trata de uma reforma e não uma revolução, como propunha o Esporte Interativo.
Estagnador porque impede um passo mais largo que poderia ser dado pelos clubes brasileiros caso se unissem e, coletivamente, optassem por um modelo que, ao invés de apenas amenizar a desigualdade, promovesse uma maior equidade.