Limpar o que?

Talvez devêssemos nos interessar mais e estudar/discutir determinados assuntos. Se isso viesse a acontecer, eu sugeriria um tema: como se perde o tesão para certas discussões.

Muito provavelmente não é característica de nenhuma área. Em qualquer uma delas, sempre haverá muita discussão em torno dos diversos temas. Mas, isso tem um custo, muitas vezes alto. Você conhece algo mais desagradável do que discutir com quem acha que domina o assunto, aquele cara que vomita conhecimento? Muito em voga nos tempos atuais, a ignorância ativa anda solta.

Nietzsche ensina que “não existe verdade absoluta, mas interpretações da realidade, condicionadas ao ponto de vista de quem as propõe”. Bastaria isso para que as discussões tomassem outro rumo. Para entender essa questão não basta inteligência, pelo contrário, ela muitas vezes atrapalha. Um profissional inteligente saca as coisas e, por se saber inteligente, acha que o seu ponto de vista é o correto.

Assim se comportam alguns professores. Tenho um amigo, professor, muito inteligente, que me disse algumas vezes em nossas conversas que há professores que são verdadeiros pregadores, são pastores. No caso, de uma doutrina chamada endodontia.

Inteligência não é sinônimo de algumas coisas, entre elas conhecimento e bom senso. São inteiramente diferentes. Quando se somam inteligência, conhecimento e bom senso o resultado é muito bom, mas é quando se junta isso à experiência que o resultado é excelente.

Experiência costuma ser reflexo de tempo vivido, razão pela qual é sempre associada à idade. Por sua vez, costuma-se associar a idade ao cansaço físico. (Oscar) Niemeyer, aos 104 anos, deve estar cansado fisicamente, mas, certamente, não é esse cansaço que o leva a dizer que está cansado da mediocridade ativa, que ele acha uma m… Dizem-me os meus botões que é esse cansaço que pode tirar o tesão para discutir certas coisas.

Uma vez batendo um papo com um jovem colega, ele disse que aprendeu desde o início na graduação e na especialização a limpar todo o comprimento do canal, tanto nos casos de polpa viva como necrosada. Ouvi e acho que entendi o que ele quis dizer.

Quando penso em tratamento endodôntico de canal com necrose pulpar, penso em infecção. É só lembrar que a maioria absoluta das alterações pulpares/periradiculares tem origem na cárie, um processo infeccioso. A literatura tem demonstrado que a infecção tende a se disseminar por todo o sistema de canais. Nesse sentido, o tempo desempenha papel fundamental.

Quando lembro que o canal cementário faz parte desse sistema de canais, penso na possibilidade/probabilidade/certeza do seu envolvimento nesse processo infeccioso. Quando lembro que onde há infecção não há reparo, penso de imediato na necessidade de promover controle de infecção. Quando penso em tudo isso, o bom senso aponta para a necessidade de incluir o canal cementário na minha tentativa de promover controle de infecção. Parece que essa situação só é passível de acontecer nos canais com polpa necrosada. Assim, nos casos de necrose pulpar, faço limpeza do forame.

O tratamento endodôntico de canais com polpa viva tem como premissa básica a ausência de infecção. Não há necessidade de se recorrer à experiência para imaginar, portanto, que o tratamento endodôntico nessas condições não tem como objetivo “limpar” o canal. Ele é realizado para remover um tecido afetado, e às vezes nem isso é, tendo em vista que algumas vezes o tratamento endodôntico encontra sua indicação na finalidade protética.

Assim, limpar o forame no tratamento endodôntico de canais com polpa viva não faz nenhum sentido. Acho pouco provável que a inteligência, o conhecimento e o bom senso respaldem esse procedimento. Outras razões existem que podem levar à manipulação do forame nessas condições, mas aí é outra história.

Caberia uma discussão. O problema é que, pelo que já vi, aprendi que geralmente não vale a pena. Às vezes fico sem tesão para discutir algumas coisas. Acho que é o cansaço.