Malandro demais vira bicho

Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho

Há dias que um samba do Bezerra da Silva toca na minha vitrola interior. “Eu já disse a você que malandro demais/ vira bicho”, cantava o inesquecível filósofo das favelas. A letra é uma advertência àqueles que falam demais, contam vantagem e se acham o centro do mundo. E conclui que o sujeito, na verdade, é um “tremendo fim de festa, um pisa na bola, um zé mané”.

Não tem como deixar de pensar na nova dupla dinâmica da política nacional: Marina Silva e Eduardo Campos.

De início, achávamos que Eduardo havia dado uma tacada brilhante, mas que Marina seria apagada e oprimida pela contradição de se mostrar tão ávida pelo poder a ponto de entrar num partido como PSB, legenda que jamais teve qualquer protagonismo no debate ambiental e se notabilizou, nos últimos anos, pelo mais escancarado pragmatismo político de que se tem notícia.

O PSB cresceu, aliás, na esteira desse pragmatismo. Aliando-se ao PT aqui, ao PSDB acolá. Eduardo Campos, quando iniciou suas articulações, também se notabilizou pela incrível desenvoltura com que se aliou aos nomes mais tradicionais do antipetismo – e isto ainda participando do governo petista e aliado aos petistas em seu estado.

Pouco antes de Marina se juntar a Campos, o pragmatismo socialista atingira seu apogeu, com a filiação de Heráclito Fortes e Paulo Bornhausen, e a adesão entusiástica de Ronaldo Caiado a seu projeto.

É justamente neste momento que chega Marina, unindo-se ao PSB numa pirueta absolutamente… pragmática. Mais que isso, numa pirueta inacreditavelmente antidemocrática e voluntarista, visto que ela decide sozinha atrelar a Rede ao PSB. Toda aquela historinha de um novo fazer político, de ativismo autoral, horizontalidade, política em rede, se esvai na primeira dificuldade. Mais importante que os princípios é a perspectiva de poder. O poder pelo poder.

E ai de quem criticar! Na contramão do seu falso discurso paz e amor, acima das polaridades, Marina não hesitou em lançar calúnias contra quem não partilha de suas ideias, ao sugerir que todos que a criticam recebem “verba pública”. Ela criou uma nova polaridade: marineiros do bem X militantes do mal.

A coisa, no entanto, é muito pior. Ao perder a votação no TSE, Marina Silva envereda por um caminho sinistro. Ao invés de, humildemente, admitir que falhou, ao deixar para recolher assinaturas em cima da hora, a ex-ministra opta por desqualificar a justiça eleitoral, uma das raras instituições públicas que os vira-latas, até então, jamais ousaram criticar.

Marina se acha tão boa, tão importante, tão perfeita, que se considera acima da justiça eleitoral, a qual deveria se curvar à sua magia. Malandro demais, dizia Bezerra, vira bicho…

Ela está acima dos partidos, da política e da lei. Paira num olimpo ético tão imaculado, tão higiênico, que pode se dar ao luxo de aderir, oportunisticamente, a uma legenda tão suja, pragmática e contraditória como qualquer outra do sistema partidário brasileiro e se manter pura como um suíno fantasmagórico a vagar incólume por um chiqueiro enlameado.

Como íamos dizendo, a impressão inicial, de que a novidade era uma cartada genial de Campos se desfez, dando lugar a uma outra, bem menos positiva ao pernambucano. Quem parece ter sido esperta mesmo foi Marina. Em questão de dias, ela engoliu Eduardo Campos, inclusive traindo sua promessa de apoiar a candidatura “já posta” do socialista. Ela conseguiu dar outra pirueta e agora é ela, não Campos, a candidata do PSB.

Pior, Marina passou subitamente a dar as cartas na legenda, transformada do dia para noite numa agremiação “marineira”. Seu ataque à Ronaldo Caiado gerou um prejuízo enorme a Campos, porque colou nele a imagem de um político volúvel e desleal. Seria natural que houvesse mudanças nos arranjos após a entrada de Marina. Mas esse tipo de coisa se faz com cuidado, após debates internos, alguns privados, outros públicos. Marina chegou dando ordens ao PSB, pelos jornais!

O dano foi grande porque o PSB não perdeu apenas Caiado, que aqui entre nós não vale nada mesmo. Ele perdeu o agronegócio inteiro, ou seja, o setor econômico mais importante e mais dinâmico do país. Todas as lideranças rurais assistiram, estupefatas, a grosseria de Marina contra Caiado. Grosseria sim, porque foi Campos quem procurou Caiado. Foi Campos quem prometeu o Ministério da Agricultura a Caiado. E daí, de um segundo para outro, ele rifa o seu principal aliado no Centro-Oeste? O que ele fez com Caiado, à direita, pode ser feito a qualquer aliado à esquerda. Basta Marina dar uma entrevista aos jornais.

Marina já está usando sua vantagem nas pesquisas de intenção de voto para se impor monocraticamente ao partido, sem necessidade de negociar politicamente. E isso tende a piorar.

No mesmo dia em que Campos perde o apoio do agronegócio, que apesar de ser ideologicamente conservador, é ao menos um setor ligado à produção, à segurança alimentar, ao comércio exterior, no mesmo dia a imprensa nos informa que Marina irá apresentar Campos a executivos do banco Itaú, seu principal patrocinador.

Ora, quer dizer que os “sonháticos” rejeitam os fazendeiros, mas caem de amores pelos banqueiros? Elas por elas, os bancos são infinitamente piores que os produtores rurais. Estes são conservadores, mas plantam a soja e o milho que alimentam vacas e frangos que suprem necessidades protéicas do Brasil e do mundo. Os fazendeiros são contra os juros altos, porque dependem de financiamentos bancários. Os banqueiros são A FAVOR dos juros altos, porque vivem de rendas. Os fazendeiros, mal ou bem, são nacionalistas, ligados à terra, e querem obras de infra-estrutura, para escoarem suas safras. Os banqueiros são ligados apenas ao capital, independente de sua nacionalidade, e não se importam com obras, porque o dinheiro não precisa de estradas, ferrovias ou portos.

Ao rifar o agronegócio para se aliar ao Itaú, Campos dá um passo decisivo na direção do rentismo, que é, seguramente, o pior tipo de parasita da nossa economia.