Por Ronaldo Souza
Em uma aula de anatomia, com um cérebro nas mãos o professor pergunta:
– O que é isso?
– Miolo.
Antecipando-se aos colegas, foi a resposta de um dos alunos.
Não precisa dizer que a partir daí ficou conhecido como “miolo”.
A vida não é um mar de rosas.
Bela, belíssima.
Mas não um mar de rosas.
Mesmo diante dos mistérios que rondam a criação e existência do homem, acredito que na sua essência o ser humano é dotado de muitas virtudes.
O ser social não.
Não o vejo da mesma forma.
Para começar, poucas vezes consegue ser autêntico. As normas da sociedade não permitem.
Há certos hábitos que não são permitidos em público, diante de pessoas iguais.
Pessoas iguais. Você conhece algo mais sangue azul?
Pertencer ao time das “pessoas iguais” é objeto de desejo que entre tapas e beijos se busca alcançar.
Fã de pão francês e sem me permitir renunciar ao prazer, muitas vezes tiro o seu miolo antes de comer. Reduzindo as calorias, ajudaria a “não engordar”.
Há exatamente 15 anos (para ser mais preciso completa agora em agosto) fui “flagrado” por um colega fazendo isso, o que motivou um comentário dele. É claro que não tenho como saber o que estaria por trás do comentário.
Foi em um lanche informal entre colegas durante um evento numa cidade do interior da Bahia. Enquanto conversávamos e tomávamos café, cometi esse pecado social, para alguns imperdoável.
Viver em sociedade é a melhor e mais fácil maneira de se violentar. Os reféns dos bons modos costumam sofrer muito.
Em casa feijão com macarrão, no restaurante jamais. A imprensa tá de olho.
Por falar nisso, se nunca comeu, experimente.
Às vezes a vida se torna hilária.
Existe sopa de feijão com macarrão, que é uma delícia e todos adoram.
Mas feijão com macarrão é pecado.
A sociedade é simplesmente cruel com essas pessoas, frequentemente tirando delas o que há de mais sagrado; a sua individualidade.
Como órgão atrofiado por desuso que vai perdendo as funções e “desaparece” com o tempo, na verdade a perda da individualidade já não é mais tão facilmente observável porque as novas gerações já crescem sem ela.
Os tempos atuais já não comportam mais o indivíduo.
“Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber”, diz Zé Ramalho.
E dar muito mais do que receber sem perceber.
É isso que caracteriza mais fielmente o homem gado do “Admirável Gado Novo” de que fala Zé Ramalho em sua música.
Não deve ser difícil imaginar que a perda da individualidade gera essa massa “que passa nos projetos do futuro”.
Futuro sobre o qual ela não terá nem influência nem importância.
Uma massa que jamais saberá o que é fazer a hora.
Marcada pelo ferro da alienação e embevecida com o que lhe dizem ser, seu destino é ser conduzida.
É assustador observar uma realidade tão chocante, saber que ainda tende a se acentuar por algum tempo e nada poder fazer.
A convicção de que você não sofrerá nenhuma sanção ou de que não se autopunirá porque terá tentado fazer alguma coisa talvez conforte, mas não elimina a desconfortável sensação de impotência.
Mas Deus, não.
Ele não terá perdão.
Tendo em vista que a Ele é atribuída a criação do homem, certamente não faltará quem O culpe pela criação de muitos homens sem miolo.
Perdão.
Sem cérebro.