Por Ronaldo Souza,
No texto anterior, MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 2, conversamos sobre o tampão apical com hidróxido de cálcio e o caso clínico abaixo foi mostrado.
Deve-se entender que o hidróxido de cálcio desempenhou basicamente 3 funções.
A primeira delas como medicação intracanal durante a fase de preparo do canal.
A medicação intracanal teve como objetivo principal exercer uma ação antimicrobiana complementar à da instrumentação e irrigação durante o preparo do canal. Neste caso em particular em um dente portador de fístula e lesão periapical que vinha sendo tratado sem êxito por uma colega, quando então o paciente me foi encaminhado.
A outra função foi a de agir como um “estimulador” de mineralização tecidual, tendo em vista que dentina e cemento tinham sido desgastados pela instrumentação e o tecido ósseo tinha sido reabsorvido, formando-se a lesão periapical.
Além desse momento como medicação intracanal, as ações antimicrobiana e mineralizadora “continuaram” ocorrendo pelo fato de o tampão apical ter sido feito com hidróxido de cálcio. Isto é, enquanto o tampão esteve presente as ações químicas dessa substância estiveram acontecendo.
Trago uma frase daquele texto:
Se a substância ou material utilizado, além de conter a obturação do canal, apresenta as características citadas, ótimo, são bem-vindas.
Excetuando-se a capacidade de selar cavidade (ação física), se observarmos bem veremos que as ações atribuídas ao hidróxido de cálcio são semelhantes às do MTA.
Tendo em vista que todos usam MTA, não parece difícil perceber que expressões pejorativas como “melar o canal com hidróxido de cálcio” (usada tolamente por alguns) refletem a ignorância de quem tenta diminuir os que não fazem tratamento endodôntico em sessão única.
Só eles não percebem.
Ver ou não ver, eis a questão.
Ou, se preferirem, perceber ou não perceber, eis a questão.
Sem noção, do simplismo foram direto para o ridículo e criaram a “batalha” – os a favor e os contra a sessão única – com interesses bem claros.
Continuemos, para que possamos entender todo o processo e não somente a sua etapa mecânica.
Vamos juntos.
O molar da figura acima já tinha sido indicado para extração em função de uma perfuração do assoalho da furca e o paciente me foi encaminhado para ver se ainda havia como salvar o dente. Observe que a imagem radiográfica da lesão da furca se encontra com a da lesão periapical da raiz mesial. Os canais mesiais estão obturados com cones de prata (seta em A).
Em B os canais estão sendo desobstruídos e os comprimentos de trabalho determinados. Um cuidado que sempre existiu foi o de manter um material selador no local da perfuração para evitar que soluções irrigadoras e fluidos teciduais circulassem entre os canais e a furca. O ponto preto mostra o material selador em questão.
Em C os canais foram obturados. Perceba o preenchimento de canais laterais pela obturação. Somente a partir daí o tratamento da perfuração da furca foi iniciado. Depois de curetar a porção envolvida da furca (contígua à perfuração), o hidróxido de cálcio PA foi colocado preenchendo toda a perfuração e foi protegido por Cimpat. Em seguida, a porção coronária foi selada com cimento de óxido de zinco e eugenol de presa rápida. Na consulta seguinte, todo esse procedimento foi refeito.
Em D, a seta preta mostra o início do canal distal parcialmente vazio, sem obturação do canal. Isto se explica pelo desejo inicial de fazer uma restauração provisória com retenção intrarradicular em função da destruição coronária. Resolvi então não fazer porque achei que haveria risco maior de contaminação a cada consulta no momento da sua remoção e da nova cimentação. A seta branca mostra que essa porção ficava protegida por material selador. A seta amarela chama a atenção para os sinais de rearranjo do trabeculado ósseo abaixo da furca.
Houve um momento em que o impacto mastigatório provocou a fragmentação do cimento selador provisório (apesar da imagem, consequência da incidência radiográfica, ele tinha pouca espessura, daí o desejo inicial de fazer uma restauração provisória com retenção intrarradicular) e houve recontaminação da perfuração. O paciente apresentava a região ligeiramente edemaciada e a furca voltara a apresentar sinais evidentes de destruição tecidual. É o que você vê em E e F. Por outro lado, observe que as lesões periapicais já desapareceram.
Observe em G a lesão de furca (seta) e as reabsorções teciduais envolvendo toda ela. Algum tempo após o reinício do tratamento com hidróxido de cálcio, percebe-se novo rearranjo dessa região, cujos referenciais anatômicos começam a se redefinir (H). Num tempo maior de acompanhamento estava definitivamente consolidada a formação de tecido mineralizado fechando a perfuração, algo facilmente observável a olho nu e confirmado com toques suaves com a ponta da sonda exploradora. A opção à época foi protege-la com guta percha, cujo momento da colocação é visto em I. Em J, a conclusão do tratamento e o selamento coronário provisório.
Compare a primeira radiografia do caso, quando foi iniciado o tratamento (A), com a que foi feita cerca de 4 anos depois, já com a prótese definitiva instalada (K). É evidente o reparo, com desaparecimento das lesões periapicais e da furca.
O que precisamos entender?
1. A partir do momento em que se controla a infecção (isso foi feito com a curetagem da furca e o uso do hidróxido de cálcio), o processo de mineralização da perfuração se dará com ou sem o hidróxido de cálcio ou o MTA.
1b. No canal isso é feito com o preparo com os instrumentos endodônticos e o hidróxido de cálcio como medicação.
2. Esse papel de mineralização cabe ao organismo e não às substâncias/materiais, sejam eles o hidróxido de cálcio, MTA ou qualquer outro que exista.
3. Para isso é necessário que se faça um bom selamento coronário para dificultar a contaminação daquela porção.
3b. No canal isso é feito pela obturação.
Se você não concorda ou até se assusta com o item 1 vá lá em cima e veja as figuras 5 (espaço vazio apontado pelas setas) e 6 (mineralização de todo o espaço vazio). Talvez seja melhor ainda reler o texto MTA ou hidróxido de cálcio? Parte 2.
“Vocês, Professores e Professoras, possuem o poder de mudar o mundo”
Vi essa frase em um breve texto no Dia dos Professores.
Possuímos sim o poder de mudar o mundo.
E poucos o possuem como nós.
Mas não usamos porque nos rendemos ao fácil.
Imaginem esse homem culto de Vargas Llosa (ganhador do Nobel de Literatura em 2010) como sendo o professor.
E não o imaginemos com a cultura nos níveis de que fala o escritor peruano, particularmente como o descreve no livro, mas simplesmente como aquele que possui um conhecimento geral mais pleno, mais abrangente do que aquele a quem ensina, o especialista.
Não deveria caber ao homem culto, o professor, abrir os horizontes do especialista, o seu aluno?
É bem possível que alguns tenham discordado e até se chocado com isso que falei sobre o vídeo de Vargas Llosa no texto Qual é o nosso real tamanho?.
Vou além.
É bem possível que alguns tenham se chocado com o texto em si, por acha-lo, quem sabe, pedante.
Não foi essa a intenção.
Não quis me referir à cultura nos níveis de que fala Vargas Llosa, algo de poucos.
Quando também naquele texto eu disse Professor e aluno de mãos dadas se incorporando à corrente do não pensar, do simplismo, e “fazendo canal, fazendo canal, fazendo canal”, nada mais, quis me referir ao conhecimento (cultura) das coisas da Endodontia, que o professor parece não ter mais.
“Sufoco de ter somente isso à minha volta
Abram todas as janelas
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo”.
Fernando Pessoa
Como pode o professor, abrir os horizontes do especialista, o seu aluno, se no seu próprio não consegue abrir as janelas?
Muitas vezes fazem imersão que nos leva ao nada.
Imersão que, segundo a Astrologia, significa “momento do desaparecimento de um astro, ao ser ocultado por outro”.
Aqui, o astro é o conhecimento, o outro a ignorância.
O professor dá as mãos ao aluno e o conduz pelos caminhos do desconhecimento.
Sem saber navegar, o aluno se afoga nos protocolos.
Nada se modifica quando se usam as mesmas ferramentas do que já está estabelecido.