Os limites na Endodontia

Limite apical

Por Ronaldo Souza

Observe na tabela acima as medidas determinadas aquém do ápice radicular como comprimento de trabalho.

Não poderia colocar nela todos os autores que desempenharam papel relevante no desenvolvimento da Endodontia brasileira. Estão autores nacionais que também desempenharam esse papel e, como foram pioneiros no lançamento de livros importantes para a nossa Endodontia, tiveram mais condições de disseminar as suas concepções.

Além deles, um estrangeiro que se tornou referência para o mundo todo.

Todos sabemos o quanto esse tema é complexo e polêmico. Olhando para a tabela podemos ver que há uma considerável diversidade de comprimentos sugeridos e que eles variam a depender do autor e da condição tecidual.

Daí podemos “tirar” muitos pontos para discutir, mas, antes de qualquer coisa, a tabela deixa uma coisa bem clara.

Ninguém sabe onde é!

Se soubéssemos não haveria tanta diversidade de CTs.

É claro que toda discussão científica é bem-vinda, mas a tabela também mostra que de uma certa forma tornam-se quase que inconcebíveis as discussões, muitas vezes verdadeiras brigas, que já foram travadas ao longo dos anos em nome da precisão absoluta que sempre se exigiu e se exige do aluno e do endodontista na determinação do comprimento de trabalho.

O dogmatismo sempre ocupou lugar de destaque na Endodontia e não foram tão poucas as vezes em que o maniqueísmo também teve espaço; ou é assim ou está errado.

De acordo com a literatura, o limite CDC, local onde se encontram a dentina e o cemento, representaria o ponto de maior constrição do canal e ali deveria ser determinado o comprimento de trabalho.

Em outras palavras, limite CDC e constrição apical seriam a mesma coisa.

Veja o que dizem alguns autores.

  1. Wu e colaboradores O Sugery, O Medicine, O Pathology

“Na polpa viva, o limite ideal para instrumentação e confecção da matriz apical parece ser de 2 a 3 mm aquém do ápice e não de 0 a 2 mm.

Quando os procedimentos endodônticos são feitos mais do que 2 mm aquém do ápice há uma redução de cerca de 20% do padrão de sucesso.

A instrumentação deve ser feita em um nível suficientemente profundo para remover ou pelo menos reduzir significantemente os microrganismos”.

  1. Spironelli, CA e Bramante, CM. Odontometria-Fundamentos e Técnicas, 2005

“O comprimento de trabalho ideal, acordado entre a unanimidade dos autores desde os estudos de Grove, situa-se no limite CDC. Aparelhos eletrônicos promovem a detecção exata da constrição apical”.

  1. Hassanien e colaboradores Journal of Endodontics

Os nossos resultados indicam que o limite CDC e a constrição apical são dois pontos distintos e que o diâmetro do canal no CDC é sempre maior do que o da constrição apical”.

Façamos uma análise crítica das colocações acima.

Na primeira delas, Wu e colaboradores dizem que o limite ideal… parece ser de 2 a 3 mm aquém do ápice”. Depois dizem quequando os procedimentos endodônticos são feitos mais do que 2 mm aquém do ápicee finalmente quea instrumentação deve ser feita em um nível suficientemente profundo.

O que foi definido?

Absolutamente nada.

O que significa um nível suficientemente profundo?

Qual é esse nível?

Se os autores falam de até 3 mm aquém, seria esse um nível suficientemente profundo?

Na segunda, os autores dizem; o comprimento de trabalho ideal… situa-se no limite CDC. Aparelhos eletrônicos promovem a detecção exata da constrição apical”.

Depreende-se que limite CDC e constrição apical seriam a mesma coisa. Chamo a atenção também para a detecção exata da constrição apical.

E na terceira os autores dizem que o limite CDC e a constrição apical são dois pontos distintos.

Precisão dos localizadores

Ângelo CT 1

“Agora, com os localizadores eletrônicos o comprimento de trabalho é determinado com precisão!”

É o que ouço dizer e leio há alguns anos.

Canta-se em prosa e verso, cada vez mais, a precisão dos localizadores e da sua importância na determinação dos limites apicais de instrumentação e obturação.

100%.

Digamos que a absurda e descabida pretensão fosse possível.

Ótimo.

Para que?

Ângelo CT 2'''

Confesso a minha dificuldade de entender o que significa dizer que, seja no aspecto físico (?), seja no geográfico (?), “a ampliação do forame apical não interfere na fisiologia do elemento dental”.

O que posso garantir a você é que quando se faz a ampliação do forame fica absolutamente evidente que há uma interferência marcante na anatomia apical.

Como diria Nelson Rodrigues, é o óbvio ululante.

Aqui, o óbvio não só ulula como dá saltos.

Mortais.

E a primeira coisa que salta aos olhos é que, aceitando-se a existência do limite CDC/constrição apical, quando você amplia o forame apical você arrebenta o que?

Justamente o limite CDC/constrição apical.

Dá para imaginar o contrário???

Forame apical menor e maior pontilhados6

Na figura acima, o forame apical maior, ou simplesmente forame apical, é representado pelo espaço correspondente à linha preta pontilhada e o forame apical menor, onde seria o limite CDC/constrição apical, pela linha amarela.

Você concorda comigo se eu disser que um instrumento que tenha o mesmo calibre do espaço correspondente ao da linha preta não consegue passar pelo espaço correspondente ao da linha amarela?

Concorda ou não?

Ótimo.

Você concorda comigo se eu disser que para chegar lá no forame apical com um instrumento que tenha o mesmo calibre do espaço correspondente ao da linha preta, você precisa ampliar bastante o que seria o limite CDC/constrição apical, o da linha amarela?

Beleza.

Então você ampliou o limite CDC/constrição apical, de tal maneira que agora consegue chegar ao forame apical (linha preta) com uma lima de calibre correspondente ao seu espaço.

Parabéns.

Agora, claro, você vai ampliar aquele espaço.

???

Não vai fazer a ampliação do forame?

Então!

Se você faz ampliação foraminal tem que ampliar o forame, não é verdade?

E ali é o forame.

Você sabe quantos instrumentos precisaria usar para ampliar o limite CDC/constrição apical para conseguir um calibre igual ao do espaço do forame, a linha preta?

Agora que chegou lá, você sabe quantos instrumentos deve usar para ampliar o forame apical?

Você se incomoda se eu deixar aqui o link de um artigo que talvez possa ajudar a entender um pouquinho essa questão? Clique nele que vai direto para o artigo.

Relationship between Files that Bind at the Apical Foramen and Foramen Openings in Maxillary Central Incisors – A SEM Study. Braz Dent J 2011;22(6):455-459

Ampliação foraminal

Dá para imaginar quanta coisa sem pé nem cabeça tem sido dita sobre esse tema?

Olha, me perdoe se pareço sei lá o que, mas é para perder a paciência.

É um tal de ampliar forame, só se fala nisso e muitos não sabem sequer do que se trata.

 Surplus

Vamos lá.

Se entram no canal sem nenhuma preocupação, fazem ampliação foraminal e destroem a ‘constrição apical’ em qualquer situação (polpa viva, polpa necrosada sem lesão, polpa necrosada com lesão, retratamento, reabsorção apical…), obturam o canal com guta percha plastificada e cimento obturador extravasando sem restrições e desafiando qualquer limite, inclusive o do bom senso, eu pergunto.

Por que e para que ter precisão no localizador???

Percebe a contradição?

Eles não percebem o contrassenso no que dizem.

É incompreensível a promessa de precisão na determinação do CT

Façamos agora um exercício de raciocínio.

Sempre foi dito que os localizadores apicais (como foram inicialmente chamados e muitos ainda chamam assim) determinavam com precisão o limite CDC/ponto de constrição.

Ótimo!

Constrição apical

Sabendo que o limite CDC não é como se ensinava, isto é, que ele não existe, como também não existe um ponto de constrição apical, como imaginar os localizadores como aparelhos de precisão para detectar o limite CDC/constrição apical?

Limites

As setas vermelhas e verdes na figura acima apontam para os vários limites CDC que existem nesses canais.

Uma vez que não existe um limite CDC, mas sim alguns, e que também não há um ponto de constrição apical, como imaginar que o localizador eletrônico dará essas medidas com precisão?

Como ele pode nos dar “uma segurança de 100% na localização do limite CDC”?

Como detectar com essa precisão o que não existe?

Entenda-os como localizadores foraminais e não apicais.

Isso muda a compreensão de muita coisa, inclusive do que fazem os localizadores.

Não se deve usá-los para buscar o que seria o limite CDC/ponto de constrição, mas sim para buscar o forame apical, o local onde “termina” o canal. Dele, recua-se para “dentro do canal” uma medida conforme o CT que cada um costuma usar.

Para uns 0,5 mm, para outros 1,0 mm, ou 1,5, outros tantos 2,0 ou 3,0…

Se é assim, são medidas precisas ou as clássicas preestabelecidas, já bastante conhecidas e que estão na tabela lá em cima na primeira imagem deste artigo?

“A constrição do canal só pode ser observada na secção adequada de um corte histológico e este é o único método que permite a determinação do comprimento de trabalho”.
Langeland, K. 1995 – Blaskovic-Subat, V. et al. 2006 – Wrbas et al. (2007)

Esta afirmativa serviria bem às minhas ponderações, entretanto, uma visão crítica mais apurada mostra que mesmo ela pode e deve ser vista com restrições.

Trabalhos como o de Ponce e Vilar Fernández na figura acima demonstram que é justamento na peça histológica que se observa o contrário, ou seja, que não há um só limite CDC. 

Observe como muda o sentido quando as duas expressões, localizador apical e localizador foraminal, são usadas.

Patência apical é o que?

Quando você fazia ou faz recapitulação na técnica escalonada, o que é que você está fazendo?

Patência no comprimento de trabalho?

Sendo assim, a rigor patência apical pode ser patência em qualquer ponto do terço apical, é ou não é?

Localizador apical me diz o que?

Nada, ou, se você quiser que eu mude para amenizar o impacto, quase nada.

O que desejam e exigem os professores de Endodontia?

Que os alunos trabalhem no canal dentinário, “campo de ação do endodontista”, como ficou conhecido.

Ora, quem “diz” onde termina o canal dentinário?

A constrição apical.

Ela diz; aqui termina o canal dentinário e começa o canal cementário.

Você, endodontista, termina o seu trabalho aqui.

Aqui é seu “campo de ação”.

O canal cementário é intocável, é sagrado.

Não ouse ir lá.

Não ouse passar desse limite.

Resultado?

Necessidade de estabelecer um limite apical de trabalho!!!

Imaginou-se inicialmente, e muitos disseram, que o localizador apical determinava com precisão a constrição apical, portanto, o limite apical de trabalho.

Já conversamos, se não existe ponto de constrição apical, como é que nós podemos querer precisão para localizar o que não existe???

– Ah, mas eu não estou preocupado com esse negócio de limite CDC, constrição apical, coto pulpar, extravasamento de material obturador, não estou preocupado com nada disso. Eu faço endodontia moderna.

Lá vou eu de novo.

– Então me perdoe, que mal não lhe faça.

  1. O localizador é para instrumentar o canal?
    Não.
  2. O localizador é para irrigar o canal?
    Não.
  3. O localizador é para colocar medicação intracanal?
    Não.
  4. O localizador é para obturar o canal?
    Não;
  5. O localizador é para estabelecer com mais precisão o limite apical de trabalho?
    Sim.

Por favor, não se aborreça comigo porque eu vou repetir a pergunta, combinado?

Se o localizador tem a função de estabelecer com mais precisão o limite apical de trabalho e você não está preocupado com esse negócio de limite CDC, constrição apical, coto pulpar, extravasamento de material obturador, com nada disso, para que você usa?

Estou negando a importância do localizador foraminal eletrônico?

Claro que não.

Agora mesmo compramos mais três para os nossos cursos na ABO-BA.

Recomendo seu uso. É mais uma ferramenta importante para se fazer um bom tratamento endodôntico, sem dúvida.

Discordo, isso sim, da precisão absoluta atribuída a eles e chamo a atenção para a contradição que existe entre o que dizem muitos professores e o que realmente acontece.

A imaginação é mais importante do que o conhecimento

Ciência não tem limites.

Ciência não tem limites porque ciência é imaginação e esta não tem limites.

Quando posta dentro de limites, quando protocolam a ciência, não há desenvolvimento, não há crescimento real.

É lamentável ver os rumos que a Endodontia está tomando.

Como diz o Prof. Spangberg, agora tudo se limita a fazer canal.

É deplorável a atitude de alguns professores que, possuidores de um conhecimento limitado, como é todo conhecimento, entregam-se ao descompromisso.

Vejo-os cá da minha janela com enorme tristeza e, facilmente identificáveis, a todos repudio.

Tornaram-se meras peças de uma engrenagem, nada mais.

O preço a pagar por isso cai na conta dos mais jovens e inexperientes.

Observe que o título deste artigo não é “Os limites da Endodontia”.

A Endodontia não tem limites.

Como ciência, ela não se permite limites. O seu limite é a imaginação.

Quando Einstein diz que “a imaginação é mais importante do que o conhecimento” bate de frente com o mundo acadêmico que tenta engessar a ciência, como se vê nos tempos atuais na Endodontia.

Não deve ser difícil entender que em qualquer especialidade em que há ato operatório, como é o caso da Endodontia, seria tolice negar a importância da técnica operatória.

Se assim é, a habilidade manual, que se adquire e se aprimora com o tempo, assume papel fundamental.

Mas também é fundamental entender que os maiores limites na Endodontia não estão nas mãos do endodontista.

Estão na sua cabeça.

Onde ficou a Universidade como centro de excelência?

Em que momento a Universidade perdeu o seu papel de estímulo à reflexão?

É dessa universidade que estamos saindo.

Nela, os limites são bem claros.

Estão à vista.