Para onde estão levando a Endodontia?

Caminho a seguir

Por Ronaldo Souza

– E o que está errado?

– Não é a Ciência. Alguns acadêmicos é que são arrogantes e se esquecem da mera condição de ser humano.

Foi assim que Olga Soffer, antropóloga e arqueóloga da Universidade de Illinois, respondeu à pergunta de uma entrevista à revista IstoÉ, em setembro de 2009.

A arrogância é bastante conhecida no mundo acadêmico, mas recomenda a prudência que ela não pode andar se exibindo por aí.

Por isso o arrogante se mostra humilde.

Pelo menos ele acha.

Na verdade, se há algo difícil de conter é a arrogância.

A todo instante ela se mostra, ainda que “controlada”.

Formas em Endodontia

Figuras geométricas planas

Lembra da imagem acima do texto Redondinho que nem moeda?

Se você não o leu, talvez seja interessante faze-lo para conversarmos melhor agora.

Qual a relação existente entre as formas?

O que elas podem representar?

Como seria preencher o espaço de um trapézio com um objeto circular?

O que as formas podem significar na Endodontia?

Qual é a forma dos canais?

Cônica.

Os canais radiculares são cônicos, como são os instrumentos.

Formas de canais e limas 1'

A figura acima nos mostra isso. Aí aparecem 5 instrumentos de diferentes fabricantes. Quatro são para instrumentação rotacional e um para o movimento reciprocante.

A conicidade dos instrumentos visa “copiar” a dos canais. Assim, a possibilidade de que toquem nas suas paredes se torna muito maior. Objetiva-se alcançar mais facilmente o desgaste das mesmas.

Por que isso?

Porque, estando as paredes também contaminadas, desgasta-las significa remover a contaminação ali impregnada, como também em parte dos túbulos dentinários.

O papel da infecção no sistema de canais

Se pudéssemos dizer uma verdade na Endodontia, qual poderia ser?

  1. A obturação do canal é o fator determinante do sucesso
  2. Não há lesão periapical sem infecção no sistema de canais
  3. Só a tomografia de feixe único pode dizer se há ou não lesão periapical

Eu apostaria as minhas fichas no número 2.

Existiriam outras verdades?

Deixemos essa “busca” para outro momento.

Tendo em vista que a infecção é a causa da lesão periapical, reconhece-se ser a instrumentação do canal e o consequente desgaste das paredes dentinárias a melhor maneira de se atingir aquilo que deve ser o objetivo maior do tratamento endodôntico: remover a causa.

A recomendação clássica determina que alguns instrumentos devem ser utilizados em sequência de ampliação dos seus calibres para que se consiga atingir o melhor resultado em termos de remoção do conteúdo do canal e da contaminação impregnada em suas paredes.

Por sua vez, em termos de quantidade de instrumentos a ser utilizada para esse objetivo a orientação mais conhecida parece ser a que diz que os canais devem ser preparados com 4 instrumentos (1+3) nos casos de polpa viva e 5 instrumentos (1+4) nos casos de polpa necrosada.

Apesar de estimulado por protocolos, é equívoco elementar tentar pré-estabelecer números em Endodontia. Não pode ser consensual, por exemplo, a quantidade de instrumentos que deve ser utilizada.

Ao mesmo tempo, se não há, e não pode haver, consenso na quantidade de instrumentos a ser utilizada, a literatura aponta para a imprescindibilidade da instrumentação.

Mesmo “copiando” os canais, é de conhecimento geral que os instrumentos não têm demonstrado a efetividade que se imaginava quanto a tocar nas suas paredes.

As limitações são claras.

Segundo a literatura, cerca de 35 a 40% das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos endodônticos.

Mesmo com o uso de alguns em sequência de ampliação, quase metade das paredes dos canais não seria instrumentada.

Formas de canais e limas 2'

O que você vê na figura 2 são exatamente os mesmos canais da figura 1 e estão dispostos na mesma ordem. Lá, observados no plano mesio-distal, os canais assumem forma cônica. Aqui, observados pelo plano proximal, algo que não temos condições de fazer nos pacientes, de cônico eles nada têm, muito pelo contrário.

De modo geral, os instrumentos endodônticos existentes hoje são de grande qualidade.

A indústria merece todos os parabéns e ainda bem que a temos ao nosso lado.

Há detalhes de requinte na sua fabricação que os tornam muito importantes para a maior qualidade do tratamento endodôntico e podem torna-los “diferentes” uns dos outros.

Não caberia aqui, entretanto, entrar nesses detalhes. Em nome da compreensão do que de fato significa o tratamento endodôntico, eles não serão comentados aqui.

Se a relação entre instrumento e canal desempenha papel importante no preparo do canal e essa importância se manifesta fundamentalmente na capacidade de um tocar nas paredes do outro, ainda que as outras não percam a sua importância deve ser esta a questão mais relevante.

Assim, reforço que apesar da inegável qualidade dos instrumentos, mais do que eventuais detalhes de como ele foi fabricado, é bem provável que, para efeito de limpeza e modelagem (se quiserem, cleaning and shaping), a forma que o instrumento apresenta ou adquire dentro do canal seja primordial.

Diante dessa perspectiva, não parece difícil perceber que não há absolutamente nenhuma relação de proximidade entre a forma dos instrumentos e a anatomia dos canais na figura 2.

Não é só por esta razão, mas por esta imagem fica mais fácil entender porque a literatura diz que cerca de 35 a 40% das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos endodônticos.

Você concordaria comigo se eu dissesse que onde não tocamos não limpamos?

Seria assim ou você prefere que eu diga que onde não tocamos fica, no mínimo, bastante prejudicada a nossa capacidade de limpeza?

Deixemos bem claro então.

Mesmo com a instrumentação proposta e executada há anos de que são necessários alguns instrumentos em sequência de ampliação de calibres, cerca de 35 a 40% das paredes dos canais não são tocadas pelos instrumentos.

Posso lhe fazer algumas perguntas?

Nas imagens acima, tendo o mesmo formato, cônico, você consegue ver algum instrumento com desenho diferente ao ponto de imagina-lo tocando mais nas paredes do canal do que os outros?

Você consegue imaginar qualquer um deles tocando em todas as paredes dos canais observados na figura 2 que, repito, são exatamente os mesmos da figura 1?

É difícil imaginar que sob essa ótica, a possibilidade de que os instrumentos toquem em todas as paredes dos canais é praticamente inexistente, ou, pelo menos, muito pequena?

De forma resumida, sob a perspectiva de que os instrumentos “precisam” tocar nas paredes dos canais para desempenhar as suas funções, você consegue ver diferenças significantes entre eles?

Diante do que acabamos de conversar, diante do seu conhecimento de anatomia dos canais radiculares, diante de tudo que você já sabe, quais são as reais chances de que só com um único instrumento você consiga fazer isso?

Se trabalhando dessa maneira há uma probabilidade de que você toque em menor quantidade de paredes do canal, portanto, menor capacidade de remoção do seu conteúdo, quais são as reais chances de controlar a infecção que fez surgir a lesão periapical?

Você está fazendo dessa maneira, tudo com rapidez, com um instrumento só, seja ele qual for, porque já tem a comprovação de que obteve sucesso a longo prazo ou porque professores “consagrados” estão dizendo a você para fazer assim?

Já lhe mostraram e/ou você já tem muitos casos de lesões periapicais reparadas com acompanhamento de alguns anos trabalhando dessa maneira?

Ainda que a pressão seja tão forte nesse momento, até porque está sendo empurrada goela abaixo pelos professores “consagrados” pelos holofotes dos palcos brasileiros, nos seus momentos de reflexão, quando surge a incerteza que só a reflexão traz, você acha que essa proposta responde às questões da Endodontia?

Você a vê como algo sensato?

Você faria assim nos seus pais?

Como um oncologista pediátrico que prescreve medicação anticancerígena a crianças, mas não a usaria caso fossem os filhos dele, você usaria essa “técnica endodôntica” nos seus filhos?

Se alguém está usando o argumento da simplificação do tratamento endodôntico, por favor, pare. Ele não pode ser utilizado aqui.

Os formadores de opinião precisam entender que existem diferenças entre as coisas.

Ainda que algumas palavras aparentem ser iguais, não são.

Ser simples é uma coisa, ser simplista é outra completamente diferente.

Simplicidade é tornar as coisas acessíveis e descomplicadas sem perder o significado, os detalhes ou a profundidade. É algo bem-vindo.

Simplismo é a falta de cuidado e seriedade ao tratar das coisas.

A Endodontia não está errada

E se me fizessem uma pergunta parecida com a que fizeram a Olga Soffer?

– E o que está errado?

– Não é a Endodontia. Alguns professores é que são arrogantes e se esquecem da mera condição de ser humano.

Arrogância é válvula de escape da estupidez e muitas vezes escudo para a insegurança dos fracos sem argumentos.

E, ao contrário do que se pode imaginar, se há algo difícil de controlar é a arrogância.

Por uma razão bem simples; a vaidade que a alimenta é incontrolável.

Ah, a boa e velha conselheira humildade.

É ela que nos leva à constante reflexão.

Mas reflexão tem um grave defeito.

Não vende.