Por Ronaldo Souza
Quando falava de instrumentação do canal cementário durante um curso em um evento de Endodontia há oito anos, um bom professor, inteligente e competente (eu já o conhecia), que estava na plateia levantou a mão e perguntou:
– Você tem um protocolo de como isso deve ser feito?
Era a primeira vez que alguém me fazia aquela pergunta em um evento e não lembro se foi feita em algum outro momento.
Por segundos fiquei calado pensando o que dizer.
Explico o porquê do “por segundos fiquei calado”.
Todo ato se explica e muitas vezes se justifica no pensamento.
É pensar sobre algo que nos faz agir.
Freud diz que “o pensamento é o ensaio da ação”.
Até mesmo o não agir, o não fazer nada, é resultado do pensamento. Ao refletir, pode-se chegar à conclusão de que nada deve ser feito.
Cada vez mais, porém, somos levados a não pensar.
E não há nada pior.
Quantas queixas existem de que os alunos não querem nada, não estudam, não fazem perguntas interessantes… Só querem saber dos passos de como fazer.
Todo mundo só quer receita de bolo.
É o que se costuma dizer.
O que é um protocolo?
Receita de bolo.
Ali estão determinados o que e como fazer.
O por que fazer saiu de moda.
Um dos grandes problemas atuais parece ser a pouca disposição para se dedicar um tempo à reflexão.
Ao estabelecer os passos de como fazer o professor tira do aluno, de graduação ou pós-graduação, a chance de pensar.
O ensino da Endodontia contribui muito para isso.
Instrumentos de grande qualidade, técnicas de instrumentação muito interessantes e de mais fácil execução e as atuais técnicas de obturação mais facilmente permitem o preenchimento do canal.
Ao final teremos obturações que promovem grande prazer visual e fazem com que o tratamento endodôntico seja visto como alargamento e vedamento hermético dos canais.
Resultado, é cada vez mais difícil encontrar ministradores cujas palestras não estão de alguma forma atreladas a instrumentos, sistemas de instrumentação, rotação contínua ou reciprocante, sistemas de obturação, materiais de obturação e coisas desse tipo.
O que nos dirão nos próximos eventos de Endodontia?
O que nos ensinarão os cursos de especialização?
Somente a fazer?
Como pretender que os endodontistas pensem e possam ir um pouco mais além?
Se você perguntar a alguns “professores”, não serão poucas as vezes em que eles próprios pouco terão a dizer da patologia que está sendo tratada e, portanto, não saberão explicar as dificuldades que podem surgir em cada tratamento.
Por acaso ninguém viu ou ouviu falar de “professores” que adoram dizer que fazem o tratamento endodôntico em tantos minutos?
É um ato mecânico.
A retórica, bem ensaiadinha e sutil e intencionalmente utilizada, ganha força e expressões como “previsibilidade” se tornam um chavão e funcionam como argumento aparentemente imbatível.
Pura bobagem.
A previsibilidade é e será sempre bem-vinda em qualquer ato cirúrgico, mas não tenho conhecimento de que bons cirurgiões cardíacos, por exemplo, fiquem sem saber o que fazer quando o imprevisto toma conta da cena cirúrgica.
Por outro lado, lamento dizer, tenho visto muitos endodontistas sofrerem com essa ocorrência porque os passos do protocolo que lhes foi ensinado foram vencidos pelas nuances que a patologia apresentou.
Protocolos são muito bons, mas basicamente propostos para os casos comuns e eventualmente precisam ser deixados de lado.
E quando a eventualidade, que parece disposta a se apresentar mais vezes do que se imagina, surge durante o tratamento endodôntico, o especialista não se comporta como especialista.
Faltam-lhe o conhecimento e a imaginação. Estes não constam em bulas.
Aquele antibiótico, com aquela dosagem, usada naquele caso do paciente X terá a mesma efetividade nesse caso do paciente Y?
Em área de saúde não é assim. Em quantas situações os procedimentos não funcionam da mesma maneira, com a mesma eficácia?
Porque os pacientes não são os mesmos, os sistemas imunes idem e as patologias são diferentes.
Mas em Endodontia é tudo igual.
Basta que você use tal instrumento, essa técnica de instrumentação, aquela de obturação…
E com o ego inflado, ao “demonstrar” que domina o ato e consegue ser “tão rápido no tratamento de um molar”, aos olhos do outro o professor se mostra o eleito dos deuses e se põe no pedestal.
E se blinda.
Para o show ser completo necessita-se da colaboração da plateia. Se a plateia não é exigente, bate palmas e pede bis, fecha-se o circuito do não pensar.
É claro que os passos de cada etapa do tratamento precisam ser estabelecidos para os alunos.
Mas isso não é um protocolo?
Antes que alguém diga isso, vamos lá.
Quanto instrumentar o canal?
Na polpa viva com 1 + 3 (um instrumento inicial e mais três na sequência de ampliação) e na necrosada com 1 + 4.
Esta deve ser a regra mais antiga e conhecida.
E se dissermos vamos usar uns 4 ou 5 instrumentos, é a mesma coisa?
Afinal, 1 + 3 = 4 e 1 + 4 = 5.
Não, não é.
Se os “4 ou 5 instrumentos” vierem acompanhados de “sempre que possível vamos usar 4 instrumentos, porque às vezes tem uma curvatura que impede uma ampliação maior…”, “vamos usar pelo menos uns 5 instrumentos, pois é uma necrose pulpar com lesão periapical e isso deve promover melhor controle de infecção e assim favorecer o processo de reparo…”
Ou seja, se ao invés de pré-estabelecer para o aluno o quanto tem que instrumentar, mostrarmos o quanto deve instrumentar e o porque de fazê-lo, não o estaremos estimulando a pensar e aprender a diferença entre o que tem, pode e deve fazer?
Deixemos bem claro que o ato mecânico desempenha papel fundamental no tratamento endodôntico, como em qualquer outro ato operatório. Ele é o ato cirúrgico.
Dificilmente se conseguirá o efeito biológico do reparo sem a conjunção das ações mecânica, física e química de um bom preparo do canal.
Mas, também como em qualquer outro ato operatório, o tratamento endodôntico requer o conhecimento que o respalde.
Não me parece que protocolos “ensinam” isso.
Talvez deva me render à importância e até à necessidade de usa-los, mas, não nego, não gosto de protocolos.
Eles nos negam o direito ao pensamento e não gosto daquilo que simplesmente pré-estabelece o que devo fazer.
Se ainda tenho dúvidas sobre a utilização ou não de protocolos, da forma como têm sido propostos, de uma coisa talvez possa ter certeza.
Não é a melhor maneira de formar alunos que pensem.
E professores também.