Por Ronaldo Souza
Simples, claro e direto ao ponto.
Convencionou-se e se tornou consenso que o tratamento endodôntico seria feito somente no canal dentinário. Por razões diversas e que não serão discutidas agora, o canal cementário nunca esteve incluído no procedimento.
Diante do fracasso do tratamento endodôntico e de eventuais malsucedidos retratamentos, a alternativa que se impunha era a cirurgia parendodôntica.
Em resumo.
Polpa necrosada, infectada, lesão periapical e tratamento endodôntico mal realizado tinham como endereço a cirurgia.
Reforcemos o conhecimento, também consensual, de que a infecção está contida no canal e não na lesão periapical.
Para não perdermos tempo com detalhes que venham a interferir na nossa conversa, mais atrapalhando do que ajudando (exigiriam um aprofundamento do tema que talvez não caiba aqui neste momento), deixemos também claro desde já que em determinadas situações alguns microrganismos podem estar presentes na lesão.
Estando a fonte de infecção a ser combatida confinada no canal e sendo a lesão periapical uma mera consequência dela e não uma patologia independente, de “vida própria”, por que Zvi Metzger e colaboradores, autores do artigo, se propõem a tratar o canal, “dão um pulo e passam por cima” do canal cementário e vão tratar a lesão periapical?
Abro um pequeno parêntese para convida-lo a ler o texto Pondo os pingos nos is (clique nele para ler).
No texto explico como e porque desde janeiro de 1987 (portanto, há 29 anos), faço o que ficou conhecido como de limpeza do forame.
Aproveito para esclarecer aos mais jovens que Quintiliano Diniz de Deus, ou simplesmente De Deus, como era conhecido e de quem falo no texto que acabei de sugerir, foi um dos grandes nomes da endodontia brasileira.
De uma certa forma era um professor com visão um pouco adiante do seu tempo.
Voltemos.
Falei no artigo anterior, Quando as evidências não estão evidentes 2, que as quatro zonas de Fish estabeleceram que a infecção endodôntica estava confinada no canal, o que respaldava e limitava a instrumentação ao canal dentinário.
“O campo de ação do endodontista é o canal dentinário”.
Lembra?
Entretanto, a literatura endodôntica já não nos permitia aceitar e continuar respaldando os nossos procedimentos nos brilhantes postulados de Fish.
Afinal, a ciência sempre evolui.
Nunca houve falta de espaço para novos instrumentos, novas técnicas, novos materiais.
Que bom, não é mesmo?
Não parecia, no entanto, existir espaço para a “entrada” de novas ideias, novas concepções.
Ainda ensaiando os primeiros passos na docência, quando comecei a mostrar os resultados com a limpeza sistemática do forame em canais com polpa necrosada realizados desde janeiro de 1987, pude perceber as dificuldades que ainda surgiriam.
E isso se confirmou.
O argumento?
Falta de evidências.
Não vou dizer que tardiamente, claro, mas a literatura demorou a despertar para o equívoco que cometia e começou a observar aspectos interessantes.
Ainda que muitos não tenham percebido, não é de agora que ela vem chamando a atenção para determinados aspectos. Vejamos somente dois artigos.
“A maioria dos canais tratados com lesão periapical apresentou infecção persistente na porção apical do sistema de canais” (Nair PNR. Int Endod J. 2006). http://www.jendodon.com/article/S0099-2399(07)80201-9/abstract
Mesmo mais remotamente ainda podemos ver citações que pareciam gritar pela necessidade de um olhar diferente sobre esse ponto.
“60% dos canais tratados que estavam com lesão periapical apresentavam bactérias entre o término da obturação e o forame” (Fukushima, H et al. J Endod 1990) http://www.jendodon.com/article/S0099-2399(07)80216-0/abstract.
Veja essas belas imagens da dissertação de mestrado do Prof. Francisco Ribeiro (UFES).
Observe na figura 1 muitas bactérias povoando o canal cementário, o que ele chamou de “plug” bacteriano.
Na figura 2 A você vê a porção final do canal dentinário no seu encontro com o cementário, em torno do qual fiz um retângulo e seta vermelha apontando para uma coluna de neutrófilos que tentam penetrar no canal para combater a infecção. Não há, porém, como fazer isso, tendo em vista que as estradas (circulação sanguínea) foram eliminadas.
Em 2 B, um aumento da zona demarcada pelo retângulo em A mostrando vários pontos de reabsorção nas paredes do canal cementário.
No seu estudo, o Prof. Francisco Ribeirou observou que as reabsorções das paredes do canal cementário estavam povoadas por bactérias Gram + e Gram -. Você vê um desses pontos de reabsorção na figura 2 C.
Por que ninguém construiu uma linha de raciocínio que contemplasse as evidências científicas que já existiam?
Veja se, diante da “nova” Ciência, estaria errado pensar dessa forma?
Uma vez que a infecção também está instalada no canal cementário, não seria interessante atualizar os conceitos nos quais estão apoiadas todas as formas de instrumentar o canal, até então concebidas sob os postulados de Fish?
Por que, tal qual o canal dentinário, o cementário também infectado não deve ser incorporado à etapa de controle de infecção, o preparo do canal?
As evidências existiam, mas não estavam evidentes!!!
O olho faz o horizonte (Ralph Emerson).
Abro novo e breve parêntese, agora para reverenciar um professor que assim que o conheci pessoalmente passei a respeita-lo mais ainda pela, entre outras coisas, lucidez e honestidade científica; Prof. Pécora.
Em agosto de 2009, mesmo ano da publicação dos artigos de Zvi Metzger e colaboradores (janeiro e fevereiro) houve o Circuito Nacional de Endodontia – Etapa Bahia (o segundo foi em 2014) e um dos pontos altos daquele evento foi o debate no último dia.
Dele participaram todos os professores convidados, menos o professor Figueiredo que teve que voltar mais cedo para Porto Alegre.
Quando diante dos anseios da plateia frente ao tema da limpeza do forame (havia outro na esteira dessa discussão, mas fica para depois) argumentou-se com a falta de evidências, ele disse algo que talvez tenha passado despercebido:
“Então ninguém pode ir além do que está estabelecido? Ninguém pode ter a ousadia de mudar os conceitos”?
Ouvi depois isso dele dito de outra forma.
Não parece elementar que toda nova proposta, toda nova ideia, toda nova concepção, todo novo instrumento e toda nova técnica surjam sem evidências que as sustentem, mas que surgirão à medida que se aceite e se estude a ideia do novo?
Afinal, novo é o que ainda não existe, está surgindo.
Precisa da comprovação daquilo que lhe é atribuído.
Professor, por favor, não feche os olhos ao que é novo porque eventualmente não lhe agrada.
Ou porque não veio de um grupo internacional.
Certamente, ou pelo menos provavelmente, Zvi Metzger e colaboradores “viram” isso.
Qual teria sido então o equívoco maior no trabalho?
Ao dar um “pulo e passar por cima” do canal cementário infectado (causa) e se preocupar em “tratar” a lesão periapical (efeito), invertem-se a ordem e importância dos tecidos onde está estabelecida a infecção.
Não é um equívoco pequeno.
No entanto, insisto, havia algo novo no ar.
E a visão curta ou a má vontade não deve existir na Endodontia, porque fecha os olhos ao que surge e não permite uma análise com isenção.
A “varredura” nos “tecidos periapicais cronicamente inflamados”, promovendo a sua “trituração”, provocaria um desarranjo nesses tecidos, o que deve permitir mais facilmente que o sistema imune entre em ação e células fagocitárias desempenhem o seu papel.
Assim, as considerações feitas neste texto não eliminam a validade da proposta de Zvi Metzger e colaboradores.
Acredito que, complementado com a limpeza do canal cementário e assim atuando de forma mais plena na remoção da causa (instrumentando os canais dentinário e cementário), um dos benefícios que o Apexum proporcionaria seria um processo de reparo mais consistente e mais rápido, o que representa uma vantagem considerável.
Este artigo continua.
Obs. Se você desejar ler alguns artigos sobre o tema, pode fazê-lo aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.