Por Ronaldo Souza
Até agora estivemos falando de tecidos mineralizados; dentina e cemento.
Nesse contexto, como ficam polpa e tecido periodontal, os tecidos que compõem os canais dentinário e cementário?
O raciocínio que será desenvolvido se aplica igualmente à figura 1 A, mas a figura 1 B servirá melhor como ilustração.
Sabemos que a polpa está contida no canal dentinário e o tecido periodontal no canal cementário. É o tecido periodontal que sofre uma invaginação, penetra e preenche o canal cementário.
Podemos então dizer que o tecido que fica em contato com a dentina é polpa e com o cemento é tecido periodontal?
Perfeito, podemos.
Ensina-se que cabe ao endodontista remover a polpa e tratar o canal dentinário, correto?
Na figura acima, a letra d está “dentro” da dentina e “do outro lado”, no mesmo nível, a letra c está no cemento. Assim, devo imaginar que o tecido aderido à parede onde está d é polpa e o aderido à parede onde está c é periodontal.
Você se imagina capaz de remover a polpa de um lado e preservar o tecido periodontal que está no mesmo nível do outro lado?
Como você imagina que ocorre o encontro entre os tecidos pulpar e periodontal?
Você o imagina como na figura 2, ou seja, os tecidos se encontram tipo “aqui termina um e aqui começa o outro”?
Ou como em 3, em que se misturam e se confundem?
O encontro entre os tecidos pulpar e periodontal não se dá de maneira que podemos remover a polpa e deixar um remanescente tecidual (coto pulpar) intacto e pleno. Esses tecidos se encontram numa mistura de células, vasos, feixes fibrosos…
Você consegue imaginar que os eventos em Endodontia não parecem ser tão simples?
Posso lhe fazer outra pergunta?
Os aparelhos são conhecidos como localizadores foraminais ou localizadores de CDC?
Percebe que essa precisão nós não temos?
Usemos então a medida mais comumente preconizada e aceita em Endodontia; 1 mm.
Tendo em vista que o comprimento de trabalho mais comumente utilizado é 1 mm aquém do ápice radicular, para trabalhar com número “redondo” imaginemos que o canal cementário tenha 1 mm de extensão.
Nas condições descritas, entendendo-se essa medida, 1 mm, como sendo correspondente ao canal cementário, teríamos nele tecido periodontal, correto?
Podemos chama-lo de coto pulpar?
Claro que não.
Por que chamar o tecido periodontal do canal cementário de coto pulpar?
Como ficamos diante dos alunos, a começar pelos de graduação, que fazem os seus primeiros contatos com a Endodontia e dizemos a eles que o coto pulpar é constituído de tecido periodontal?
Ou será que ninguém diz?
Já se ensina chamando de coto pulpar, não se toca no assunto e estamos conversados?
Basta dizer, o CT é 1 mm aquém, respeitem o coto pulpar e dane-se o resto?
E aí os alunos voltam ao box e executam como foi determinado?
Em que momento estamos formando especialistas em Endodontia se tiramos deles a possibilidade de pensar e os transformamos em autômatos repetidores de ordens?
Como formar especialistas de fato se não os estimulamos a pensar?
Não acham que esse é o caminho mais curto para se tornarem dependentes dos protocolos?
É mais prático, mais cômodo, mas é isso o que todos querem?
Ah, mas isso não tem importância. Já está consagrado e não traz nenhum prejuízo.
Será?
Conhecendo (um pouco) a polpa
Por que a polpa coronária é chamada de “coração da polpa”?
Porque é a sua porção mais celularizada.
O tecido conjuntivo celularizado apresenta maior capacidade de reparo.
À medida que “caminha” para o terço apical, ela vai perdendo essa característica, de tal forma que nas porções mais apicais já se apresenta menos celularizada e com mais fibras colágenas.
Menos células, mais fibras colágenas, menor capacidade de reparo.
É assim que ela se apresenta nas porções finais do canal.
Pelo fato de o tecido pulpar ser menos celularizado justamente ali, o Prof. De Deus dizia ser um equívoco creditar a esse segmento, onde ele é menos capaz, a responsabilidade pelo reparo.
Está escrito assim no livro Endodontia Clínica (Ed. Santos, 2003, página 14):
“Segundo DE DEUS (1992) e LOPES & SIQUEIRA (1999), talvez não seja o procedimento mais adequado confiar o processo de reparo a um segmento tecidual pouco celularizado e, por isso, pouco capaz de promover reparo”.
De fato, naquele segmento a polpa apresenta menor potencial de reparo, mas aí há um pequeno equívoco.
Conhecendo (um pouco) o coto pulpar
Você sabe que o cemento circunscreve toda a superfície radicular e no final da raiz sofre uma invaginação e “entra” no canal. O quanto ele penetra constitui o canal cementário.
O ligamento periodontal possui uma das mais elevadas capacidades de se reconstituir do organismo. Como consta na literatura, possui um elevado turn over, um dos mais altos do organismo.
É este tecido que constitui o canal cementário.
Está escrito assim no livro Endodontia Clínica (Ed. Santos, 2003, página 14):
“Toda a responsabilidade pelo reparo dos tecidos apicais é dos tecidos periodontais. Dito de uma outra forma, isso significa que no caso de necrose parcial ou total do coto pulpo-periodontal, a sua reparação se dará às expensas dos tecidos periodontais, inclusive a reparação do componente pulpar desse coto. A despeito do trauma, desaparecida a reação inflamatória, que, entre outras coisas, levou à referida necrose, haverá crescimento de tecido conjuntivo, aumento da densidade de fibras e normalização das estruturas vasculares, ou seja, a despeito da injúria, ocorrerá reparo (Benatti, 1982). Tudo isso às expensas dos tecidos periodontais”.
Veja o que já diziam o Prof. de Histologia Flávio Fava de Morais (um dos grandes nomes e página especial da Odontologia Brasileira) e colaboradores no capítulo Histologia do Periodonto, no livro Periodontia Clínica, de Lascala e Moussalli (1989).
“Diferentemente dos demais tecidos conjuntivos fibrosos, o ligamento periodontal apresenta excepcional índice metabólico”.
Seria de fato um grande equívoco creditar à polpa a responsabilidade pelo reparo onde ela é menos capaz.
No entanto, credita-se o reparo a aquele remanescente tecidual porque ele não é polpa e sim tecido periodontal, este sim, com elevada capacidade de se refazer e promover reparo.
Não pretendo dissecar o tema e sugerir mudanças, por entender que não caberia faze-lo aqui, mas já passou da hora de compreendermos e ensinarmos o tecido contido nas porções finais do canal como periodontal e não pulpar para entendermos o tratamento endodôntico.
Foi um equívoco que se cometeu ao longo dos anos tratar o limite apical de trabalho como uma questão numérica.
Imaginar que a questão é estabelecer a quantos milímetros aquém do ápice devemos ficar é erro grosseiro.
Ficar falando, discutindo, ensinando o comprimento de trabalho em detalhes milimétricos quando sequer mecanismos de precisão temos para isso é insistir no erro cometido no passado.
Este texto continua.