Por Ronaldo Souza
Trago de volta uma das imagens da postagem anterior, “Surplus”, embuste em inglês, para ajudar a continuarmos a nossa conversa.
Ela servirá para reforçar em nossa memória o que pode acontecer com o paciente quando os procedimentos endodônticos não encontram o devido respaldo científico.
Servirá também para mostrar como algumas “técnicas” atropelam o bom senso.
Mas trago outra.
A da figura abaixo.
Observe as setas brancas indicando por onde passa o canal mandibular e a sua proximidade com os ápices radiculares.
Observe agora as setas pretas e veja que o surplus ganhou um aspecto diferente, como se fosse uma “rede de obturação” no tecido ósseo.
Certamente teria sido motivo de enorme satisfação pela “beleza” da imagem, não fosse a parestesia que a paciente acusa há mais de um mês graças ao surplus, outra vez agredindo o nervo alveolar inferior como indica a seta amarela ao mostrar o quanto de material obturador está no canal mandibular, ainda que a imagem permita ver somente parte dele.
A colega que tratou esse canal não terá sossego por um bom tempo com a paciente reclamando dela uma solução para o problema. A esta, a paciente, restará a parestesia sem previsão de quando desaparecerá.
Só para relembrar, isso foi intencional.
Claro que o desejo não era fazer o surplus no canal mandibular, mas foi intencional faze-lo. A própria endodontista confessou.
Vamos em frente.
Veja a figura 1 abaixo.
A obturação foi realizada a cerca de 1 mm aquém do ápice radiográfico (B) e a compactação e homogeneidade observadas na imagem radiográfica sugerem uma obturação bem feita. Em C o desaparecimento da lesão periapical.
Reparo pleno.
Todos os referenciais anatômicos (espaço do ligamento periodontal, lâmina dura, tecido ósseo periapical) se mostram em condições normais.
Esse tipo de reparo seria possível se tivesse sido feita uma obturação com surplus?
Vejamos agora os dois casos clínicos abaixo (Fig. 2).
Ambos apresentavam próteses com pinos e foram retratados pela Dra. Brice Barreto, aluna do Curso de Especialização em Endodontia da ABO-BA.
Aqui são mostradas somente as radiografias necessárias para a apresentação do caso.
A radiografia mostra grande lesão periapical, sugerindo provável destruição de tábua óssea.
O exame clínico mostrou edema bastante acentuado ocupando todo o palato do lado correspondente aos dentes em questão. Durante o acesso, os canais dos dois dentes apresentaram intenso exsudato purulento.
Situações como essa costumam ser de mais difícil controle, o que se confirmou durante o tratamento.
Após desobturação, vê-se em A e B a determinação do CT dos canais. Foi realizado preparo do canal com hipoclorito de sódio a 2,5% e EDTA, com limpeza ativa do canal cementário e medicação intracanal com hidróxido de cálcio em ambos.
Na consulta seguinte, mesmo que em menor quantidade, o exsudato purulento ainda estava presente, como também se apresentou na sessão seguinte.
Quando enfim os sinais clínicos deram indícios de controle de infecção, um deles a ausência de exsudato, os canais foram obturados.
Pode-se observar que as obturações, bem compactadas, apresentam homogeneidade em toda sua extensão (C), tal qual a feita no caso da figura 1, obedecendo aos padrões exigidos.
O processo de reparo, ainda em andamento, é visto em D um ano e meio depois.
Aproveito e abro um parêntese.
A recomendação de tratamento endodôntico em sessão única de canais com exsudato persistente reflete grande desconhecimento de princípios elementares da Endodontia e da fisiologia do reparo tecidual.
Vamos ao caso da figura 3. Aqui, como no caso da figura 1, volto ao meu consultório.
O canal do 12 foi tratado e o do 11 retratado.
Além da lesão, observe a reabsorção apical do 12 em A. Em B a lima está posicionada a 0,5 mm além do ápice radicular, onde trabalhou para instrumentar o canal cementário. Em C o mesmo procedimento no 11.
Em D o canal do 12 aparece concluído e o do 11 ainda por ser tratado. Observe agora mais evidente a reabsorção apical do 12 (seta). Em E a radiografia é de acompanhamento cinco anos depois. A paciente esteve sob tratamento ortodôntico até pouco mais de um mês antes dessa radiografia.
Perceba que a lesão periapical do 11 (retratado) desapareceu, mas observe principalmente o pleno reparo do 12, não só pelo desaparecimento da lesão periapical como pela deposição de tecido mineralizado, fazendo desaparecer a reabsorção apical, o que caracteriza selamento biológico (seta).
Além disso, observe também que os limites apicais das obturações são diferentes. Sem alterações evidentes na configuração do seu ápice, a obturação do 11 está mais próxima do ápice do que a do 12.
Como o ápice do 12 se encontrava reabsorvido, o surplus seria inevitável se ele fosse obturado no mesmo limite do 11, com grande quantidade de extravasamento de material obturador.
Quando isso ocorre comemora-se como mais uma demonstração de excelência em tratamento endodôntico.
Um grande equívoco.
Compare o ápice do 12 nas duas figuras, D e E.
O canal foi obturado aquém dos limites clássicos preconizados, a reabsorção ficou completamente vazia, sem material obturador, os fluidos teciduais periapicais penetraram à vontade naquele espaço (ou alguém imagina que isso não aconteceu?) e mesmo assim o reparo se deu.
Não só se deu como ocorreu em toda sua plenitude, inclusive com selamento biológico.
Não há reparo melhor do que esse.
Esse tipo de reparo seria possível se tivesse sido feita uma obturação com surplus?
Por que fiz essa pergunta anteriormente e repito agora?
Para dizer que não seria possível e mostrar porque.
Vamos aos casos da figura 4.
Os dois casos das figuras A, B, C e D você acabou de ver e observou a qualidade do reparo, repito, com selamento biológico.
Nos das figuras E, F, G e H, tratei primeiro o 12 que já aparece concluído em F.
Vamos ao 11.
Observe em F a lima posicionada como está a lima em B. O preparo do canal foi realizado nas mesmas condições descritas para o caso da figura 2.
Houve extravasamento acidental de material obturador (G). Em H pode-se observar que a lesão periapical diminuiu consideravelmente de tamanho, mas ainda está presente em torno do material obturador extravasado, que se mantém praticamente inalterado em termos de tamanho (setas).
Perceba a diferença na qualidade do reparo nas duas situações.
Enquanto na figura D observa-se reparo completo com selamento biológico, a figura H mostra imagem de lesão periapical e presença do surplus.
Nos dois casos o acompanhamento é de exatamente cinco anos. E por grande coincidência as duas radiografias, D e H, foram feitas no mesmo mês; maio.
Lembra daquela pergunta?
Esse tipo de reparo seria possível se tivesse sido feita uma obturação com surplus?
A resposta você já tem.
Você está vendo que não.
Veja o que eu disse seis linhas acima: “… a figura H mostra imagem de lesão periapical e presença do surplus“.
Observe que coloquei “imagem” de lesão periapical e não lesão periapical.
Por uma razão bem simples; ali não é mais lesão periapical, pelo menos como se entende a expressão.
Quando falamos em lesão periapical subentende-se que é uma lesão de origem endodôntica, que por sua vez tem origem na infecção do sistema de canais.
Aquela imagem residual de lesão não tem mais origem na infecção do sistema de canais porque esta não existe mais.
Se ainda houvesse infecção no canal a lesão periapical não teria o seu tamanho reduzido naquelas proporções, quase desaparecendo completamente.
A imagem que você vê apontada pelas setas em H representa uma reação inflamatória crônica à presença de um corpo estranho.
Qual?
Surplus!
Quer ver uma coisa?
Volte lá nas figuras 4 C e D.
Onde foi que ocorreu a deposição de tecido mineralizado que a seta aponta em D?
No espaço vazio que a seta aponta em C.
Se ali houvesse material obturador, como poderia ocorrer a deposição de tecido mineralizado para na sequência constituir o selamento biológico?
Dois corpos, tecido mineralizado e surplus, não podem ocupar o mesmo espaço físico.
Ou um ou outro.
O que podemos deduzir?
Que a obturação com surplus impede o pleno reparo.
E chamam isso de “excelência em Endodontia”!
Quando você ouvir falar de surplus, não dê importância.
É bobagem.
Não faz o menor sentido.
A Endodontia brasileira está cheia de “mãos santas” e pregadores da verdade divina.