13/08/2014. Há exatamente um mês terminava a Copa das Copas.
Por Ronaldo Souza
Futebol e política sempre andaram juntos. Sempre houve tentativas de tirar proveito do futebol em benefício da política. Não é de agora, sempre foi assim.
É possível que o momento em que isso se mostrou mais marcante tenha sido na Copa de 1970, no México. Entrou em campo o time formado por Pelé e Cia. Fora dele, o governo da ditadura. Enquanto a seleção fazia os gols e ganhava os jogos, brasileiros eram torturados, entre os quais uma jovem de 17 anos de idade.
Que diabo uma jovem de 17 anos, que devia estar nas baladas, na praia, curtindo a vida, fazia na prisão? Por que estava ali?
Era a primeira copa transmitida pela televisão. Para o Presidente Médici, do governo militar, a cores.
Aquela menina de 17 anos e os demais presos sempre davam um jeitinho de arrumar um radinho de pilhas para ouvir o jogo.
Mesmo vivendo aquele momento de horror, de choques elétricos, paus de arara e outras torturas, “juntavam-se” (cada um em sua cela), para ouvir os jogos. Nesses momentos, esquecidos pelo regime, “ganhavam uma folga” e se reencontravam com o país através do futebol; certamente os gols do Brasil tinham um sabor especial.
Eram momentos em que ao coração era dado o direito de gritar. O grito de gol era a explosão contida no peito. Mas não era só um grito de gol, era o grito da liberdade, por breve que fosse.
Quarenta e quatro anos depois aquela garota, presa e torturada, esteve diante de outra Copa. Quarenta e quatro anos depois a Copa foi no seu país. Quarenta e quatro anos depois quis o destino que aquela garota, presa e torturada, fosse a presidenta do país onde foi a copa.
E outra vez ela foi torturada.
Não pelos militares, mas pelos mesmos órgãos de comunicação que patrocinaram a tortura sofrida pelos brasileiros, um dos quais há pouco tempo, ridícula e vergonhosamente, protagonizou a dissimulação de um mea culpa, que hoje se mostra mais ridículo e vergonhoso ainda, se isso é possível.
E, pior, por um segmento da mesma sociedade pela qual ela perdeu a sua juventude. Ínfimo, verdadeiramente insignificante e desprezível, mas um segmento forte pelo poder que o dinheiro lhe confere.
Mas a coragem e dignidade da garota de 17 anos estavam preservadas naquela senhora que agora era a presidenta do país.
Quem não sabia que a senhora seria vaiada na abertura da Copa, lá no Itaquerão? Mas a senhora não podia fugir (como se a senhora soubesse o que é isso) dos deveres inerentes ao cargo.
Só que eles, presidenta, extrapolaram na grosseria e na covardia e fizeram mais do que vaiar; xingaram daquela forma.
Pelo menos em 1970 a senhora tinha uma válvula de escape para amenizar sua tortura; a seleção brasileira, que a todos encantou com o seu futebol.
Mérito que foi atribuído a Zagalo, quando se sabe que muito daquela seleção tinha a ver com João Saldanha.
A senhora lembra como o chamavam? João Sem Medo. Pela coragem que ele tinha, como por exemplo, ao enfrentar o governo militar e dizer: “os senhores escalam o seu ministério, eu escalo a seleção”.
Por isso, ele não foi o técnico durante a Copa. Saldanha não era um nome agradável ao sistema.
De uma forma ou de outra se atribuiu o sucesso ao técnico da seleção, sua comissão técnica e, claro, aos jogadores.
Justo, não acha presidenta? Afinal uma seleção de futebol depende do técnico e sua comissão técnica, que é quem convoca, prepara e escala o time, e dos jogadores, que jogam.
E eis que nesta Copa a seleção foi mal, muito mal.
Mas o futebol aqui no Brasil tinha mudado muito Presidenta e a senhora não percebeu.
A seleção que a imprensa imaginava vencedora antes da Copa, que já estava com uma mão na taça, era a Seleção do Felipão. A senhora não percebeu que se perdesse, e perdeu, a culpa seria sua; a culpa seria da presidente da república.
Entendeu presidenta? A seleção vitoriosa, a da mão na taça, era a do Felipão. A derrotada foi a sua.
Presidenta, lamento dizer, mas a culpa foi sua.
Ou a senhora pensava que ia escapar?
A senhora convocou mal, escalou mal, fez substituições erradas, queria o que?
Mas não foi só o futebol que mudou.
A vergonhosa incompetência em não oferecer as mínimas condições para a realização da Copa era do governo.
Os aeroportos iam ser um inferno.
Todos os voos iam atrasar.
Ia ter um apagão de energia.
Ia ter uma epidemia de dengue…
Presidenta, a senhora não ia entregar nem os estádios a tempo e a previsão feita por uma revista semanal especializada em construção de estádios era de que só ficariam prontos em 2038.
Era, antes de ter sido, sem jamais ser, o maior desastre de todos os tempos.
E aí aconteceu o milagre. Tudo funcionou. Brasileiros e estrangeiros se irmanaram: foi a Copa das Copas (tenho a leve impressão de que alguém já falou isso).
A senhora, toda feliz, deve ter imaginado: acertei em cheio.
Que nada, presidenta, essa era a outra mudança que a senhora não tinha percebido.
A vergonhosa incompetência em não oferecer as mínimas condições para a realização da Copa era sua. O mérito foi… das construtoras.
Viu como choveu em Natal e Recife? Como é que a senhora permite uma coisa dessa? Como foi que a senhora deu uma mancada dessa, deixar chover daquele jeito. Não sabe que isso estraga o gramado e dificulta bastante o jogo? Quase não tinha jogo em Recife, já pensou?
Ainda bem que os responsáveis pelo sucesso da Copa, as construtoras, até nisso pensaram; fizeram um bom gramado. Eles salvaram a Copa.
A senhora soube da mais nova?
Culparam-lhe pelo semblante fechado e falta de sorrisos na cerimônia de encerramento da Copa e entrega da taça ao capitão da seleção alemã.
Até um vídeo eles montaram para mostrar que nem os jogadores da Alemanha queriam falar com a senhora. Mais uma farsa. São mestres na arte da mentira.
Tinha que sorrir, presidenta, sorrir.
Como podiam pedir para sorrir alguém que estava sendo torturado?
Quem não sabia que a senhora seria vaiada outra vez, ainda mais depois do jeito que a senhora armou o time na humilhante derrota frente a Alemanha?
E aí, o que fez a senhora?
Aquilo que todos nós sabíamos que a senhora ia fazer.
A senhora foi.
E a vaia já estava lá, ansiosa, lhe aguardando.
E se, por um instante, a senhora tivesse esquecido que era brasileira e, como os brasileiros, estava sofrendo?
E se, por um instante, a senhora tivesse esquecido que era brasileira e que estava sofrendo por ter imaginado que era a nossa seleção que deveria estar ali e não estava?
E se, por um instante, a senhora tivesse esquecido que era brasileira e sorrisse aquele sorriso cínico dos que querem estar bem e agradar a qualquer custo?
A senhora consegue ver a manchete da imprensa nos dias seguintes? Daquelas discretas que costumam fazer para a senhora?
“ENQUANTO O POVO BRASILEIRO CHORA A HUMILHAÇÃO SOFRIDA, DILMA SORRI”.
Na primeira página.
Escandalosa.
E aquela foto maravilhosa com a senhora sorrindo ocupando toda a primeira página dos jornais e capa das revistas. Será que a televisão ia fazer alguma reportagem especial mostrando o sorriso da presidenta?
Por falar nisso, a senhora tem assistido ao Jornal Nacional?
De que lhe acusam? O que lhe pesa sobre os ombros?
Quem são essas pessoas que no anonimato mais cruel e covarde agridem violentamente uma mulher da qual jamais se aproximarão em termos de coragem e dignidade?
Há algum sinal, qualquer que seja ele, que aponte contra a sua dignidade?
Não. Não há.
A razão é outra, presidenta.
Razão que não lhes é dado perceber.
Sentem.
Mas não percebem.
Está lá, escondida, no mais profundo recôndito da alma.
Perigosa.
Desperta os instintos mais primitivos e bestiais do ser humano.
Presidenta Dilma, obrigado.
Não só pela Copa das Copas?
Obrigado pela sua dignidade e coragem.
O que a vida quer é coragem.