Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade

Por Ronaldo Souza

Se você ainda não o fez, para sua melhor compreensão antes de ler este texto leia esse aqui X + Y é igual a que?. Caso contrário, ficará mais difícil entender.

Se já leu, vamos.

Perceba que o expert põe os trechos do artigo em inglês (como foi publicado) e vai fazendo suas críticas (em vermelho). Logo abaixo estão as minhas considerações sobre cada uma das críticas.

Ele será identificado como M e eu como R que, como você sabe, é a letra inicial do meu nome.

Dito isso, vamos direto aos questionamentos do mestre.

  1. The present article describes the treatment of a mandibular right first molar with vital pulp

M – os autores nao relatam como foi feito o diagnostico. A incompatibilidade entre o diagnostico clinico e histopatologico pode explicar a presenca da lesao apos algum tempo;

R – Realmente, depois dos exames clínicos feitos, teste de sensibilidade, ter acesso à câmara pulpar, ver a polpa, vermelha, viva, sangrando, somente isso é muito pouco para saber se a polpa está viva ou necrosada.

Ainda mais quando a polpa, safadinha como ela só, esconde todas aquelas placas de aviso – ei, veja como estou viva, veja como é o meu vermelho, veja como é o meu sangramento, veja como tenho corpo e ele oferece resistência ao seu toque.

Quando ela esconde esses avisos, aí é que ninguém consegue saber mesmo se está viva ou não.

É por essa razão que todos os endodontistas removem a polpa, deixam seus pacientes esperando um pouco na cadeira, vão ao laboratório na sala ao lado (o que!!! Você não tem um laboratório de histopatologia no seu consultório? Como é que você quer fazer endodontia desse jeito?), preparam a lâmina, levam ao microscópio e somente aí podem fazer o diagnóstico de vitalidade pulpar. Agora sim, tendo a certeza de que a polpa está viva ele pode afirmar que tratou um canal com polpa viva.

Portanto, se você não faz nada disso, jamais dê um diagnóstico de polpa viva só porque viu a sua cor, consistência, sangramento, essas coisas sem importância.

  1. During determination of the working length

M – nao foi descrito o metodo de deteccao do CT. Radiografico apenas?

R – É fato. Até pouco tempo o método radiográfico servia. Hoje não presta mais pra nada. Não perca mais tempo com radiografia. Agora a determinação do CT só tem validade se for feita com localizadores foraminais eletrônicos.

Além disso, para ser padrão ouro recomenda-se que, com as limas nos canais, o paciente seja encaminhado a uma clínica radiológica para fazer uma tomografia computadorizada de feixe cônico (Cone Beam) para saber se o que você está vendo na radiografia periapical é realmente o que você está vendo (quer dizer, caso você ainda use, porque ninguém mais usa radiografias). Você já deve ter lido que agora a determinação do comprimento de trabalho através da radiografia periapical não tem mais nenhum valor, ninguém aceita mais.

Não esqueça de orientar o paciente para não fechar a boca enquanto se dirige à clínica.

Outra coisa, a deduzir pela exigência da descrição do “metodo de deteccao do CT“, a publicação do relato de caso clínico, segundo o mestre, exige que você faça “material e métodos” e o descreva em detalhes, ou seja, a marca e as características do aparelho de raios X, endereço da empresa… como também do localizador foraminal eletrônico e do tomógrafo utilizado. Ah, esses homens maravilhosos e seu maravilhoso discernimento.

(Trago a imagem do artigo para acompanharmos melhor).

Imagem1

  1. At each instrument change, canals were irrigated with 2 mL 1% sodium hypochlorite

M – Onde estah o controle da concentracao da solucao irrigante? Serah que a concentracao estava correta?

R – Não sei como pude esquecer esse detalhe, justamente nesse paciente. Faço isso a cada paciente. Cada paciente que chega ao meu consultório, antes de atende-lo, vou analisar a titulação da minha solução irrigadora. Aliás, recomendo a vocês fazerem o mesmo. Vou aproveitar para estabelecer um protocolo para vocês seguirem:

  1. toda vez que for atender um paciente (não esqueçam, para cada paciente), analisem a titulação do hipoclorito de sódio,
  2. do EDTA
  3. o pH do hidróxido de cálcio.
  4. após isso, já tratando o canal, remova a polpa e vá ao seu laboratório de histopatologia (tome vergonha e monte um) e veja se a polpa está viva. Confirmando o diagnóstico de polpa viva,
  5. determine o comprimento de trabalho com uma radiografia periapical, confirme com o localizador foraminal e depois encaminhe o paciente para fazer a tomografia. Não esqueça de avisar que ele não pode fechar a boca.

Somente após esses passos você poderá detectar (!) o CT.

E olhe lá! Porque, histologicamente você sabe que o limite CDC não é…

  1. Following that, a corticosteroid-antibiotic intra-canal dressing (Rifocort-Medley; Indústria Farmacêutica, Campinas, Brazil) was placed

M se o diagnostico foi de vitalidade pulpar, para que usar esta medicacao intracanal?

R – Outra vez não sei onde estava com a minha cabeça. Desde os primórdios da endodontia, particularmente aqui no Brasil, o tratamento endodôntico sempre foi realizado em sessão única, nunca em sessões múltiplas. Nunca se usou medicação intracanal.

As escolas no Brasil, nenhuma delas, nunca ensinaram a usar corticoide como medicação intracanal na polpa viva.

Professor, o caso clínico do artigo foi publicado nessa época por razões que em breve deverão se tornar conhecidas, mas foi realizado há muitos anos, quando o uso de medicação intracanal era o padrão e não dá para discutir agora a questão da sessão única. Até gostaria porque a sua postura sugere que talvez fosse interessante para o senhor. Mas vou fazê-lo em outro momento.

O que posso lhe dizer por enquanto é que as opiniões fechadas não costumam encontrar espaço na área de saúde e a Endodontia não é exceção. Vou repetir, a Endodontia não é exceção.

São as tentativas de pré-estabelecer e limitar os horizontes da Endodontia que a tornam menor.

Mas é assunto para outro dia.

Posso, entretanto, sem nenhum constrangimento, assegurar que, ainda que nem todos possuam a mesma capacidade de interpretar (ainda bem que é assim pois é isso que torna a raça humana mais rica na sua diversidade) os meus alunos de graduação e pós-graduação são orientados para ter uma visão bastante ampla dos conceitos em Endodontia, sem barreiras pré-estabelecidas.

Vou dar um exemplo.

Tão na moda, e não faço juízo de valor, o estudo da anatomia, não é mesmo?

Estudo tão importante e que tem entre nós pelo menos dois grandes estudiosos do assunto, os professores Quintiliano Diniz de Deus (que na verdade infelizmente não está mais entre nós) e Jesus Djalma Pécora, que tiveram que usar muita imaginação para fazer o que fizeram.

Por vezes, professor, em alguns estudos atuais, mesmo com todos os recursos de que dispomos, sinto falta da imaginação que pude ver nos professores citados.

Ver não é interpretar.

  1. Material restaurador provisorio entre sessoes – nao foi citado o material nem quanto tempo de medicacao intracanal. Serah que o tempo decorrido entre a sessao inicial e a final nao foi em excesso, promovendo recontaminacao entre sessoes?

R – Uma vez que a recontaminação só é possível em meio que esteve contaminado, mesmo que “o tempo decorrido entre a sessao inicial e a final” fosse em excesso, a recontaminação não seria possível porque se tratava de polpa viva e como tal não estava contaminada.

Além disso, pelas características de ação dos corticoides e a discussão quanto à sua concentração e tempo de uso em Endodontia, a recomendação é que a sua aplicação não seja por um tempo superior a 3 ou 5 dias.

O conhecimento dessas informações deve nos levar a pressupor que não existiriam razões que justificassem que o tempo decorrido entre a sessao inicial e a final fosse em excesso.

  1. 2.0 mm short of the apex in the …distal canals

M – qual o criterio para esta distancia? Os autores nao falam sobre o metodo de determinacao do limite apical de instrumentacao e obturacao.

R – Quanto ao “metodo de determinacao do limite apical de instrumentacao e obturação”, o artigo mostra através das suas imagens que foi o radiográfico.

Sobre os limites apicais, o artigo diz “up to 0.5 mm short of the apex for the mesial canals and 2.0 mm for the distal canal”.

A distância é a preconizada pela literatura – de 0 a 2 mm aquém do ápice.

Mais claro é impossível.

  1. A 3-year radiographic follow-up showed the development of periapical lesions on both roots

M – Nao ha relato sobre o tipo do material restaurador nem suas condicoes passado este tempo. Ha infiltracao?

R – Professor, o que o aflige? O senhor não observou que entre a figura B (conclusão do tratamento) e a C (acompanhamento) decorreram 3 anos e o dente estava com uma restauração definitiva? O senhor também não observou que, apesar do pequeno excesso na face mesial da restauração (o senhor não deve ter percebido que por conta disso há um espessamento cervical do espaço do ligamento periodontal), não há qualquer indício de infiltração na imagem radiográfica? Clinicamente também foi assim que se mostrou.

Foi por isso, professor, que não removi a restauração metálica fundida (bloco). De tão boa que estava (agora que o senhor chamou a atenção fiquei até em dúvida se estava mesmo) que a mantive e fiz o acesso para o retratamento por ela. Era uma “garantia” a mais do selamento que eu teria entre as consultas.

  1. As in the earlier treatment, root canals were filled up to 0.5 mm short of the apex for the mesial canals and 2.0 mm for the distal canal

M – veja que se manteve as mesmas condicoes do tratamento inicial. Os autores nao relatam se foi feito em sessao unica ou multipla. Por que deu certo? Concentracao da solucao irrigante? Melhores condicoes de vedamento entre sessoes?

 R – Quanto a ter sido em sessão única ou múltiplas sessões, o artigo diz o seguinte:

No tratamento – “Following that, a corticosteroid-antibiotic intra-canal dressing (Rifocort-Medley; Indústria Farmacêutica, Campinas, Brazil) was placed”.

No retratamento – “…last instrument used up to the working length and dressed with calcium hydroxide mixed with sterile saline for 30 days.”

Imagino que essas informações sejam suficientes para não deixar dúvidas “se foi feito em sessão única ou múltipla”. Confesso que também aqui não entendi a dúvida do Mestre inquiridor.

Por que deu certo?

Porque “entre o Céu e a Terra há mais mistérios do que a nossa vã filosofia possa imaginar” (Shakespeare).

Obs. Este artigo não se encerra aqui. Terá continuidade.