Um “expert” perdido entre a má fé e a obtusidade 2

Por Ronaldo Souza

No artigo anterior sobre esse tema, terminei com a pergunta abaixo do expert e com a minha resposta recorrendo a uma frase de Shakespeare.

Por que deu certo?

Porque “entre o Céu e a Terra há mais mistérios do que a nossa vã filosofia possa imaginar” (Shakespeare).

Uma brincadeira?

Pode parecer que sim, mas não é.

Por enquanto perguntarei somente isso:

Em ciência, quem elucida os mistérios?

Voltemos às críticas do nosso expert. Como tínhamos terminado na de nº 8, recomecemos com a 9.

  1. An 8-year radiographic follow-up showed repair of the periapical lesions on both roots

M – mais uma vez o velho problema da avaliacao do sucesso mediante exame radiografico. Ha espessamento do ligamento no apice da raiz distal. Serah que curou mesmo? Soh a CBCT para dizer….

R – Existem dois temas muito importantes e em constante discussão nas ciências; evolução e involução.

Expressão de significado amplo, fundamentalmente evolução significa desenvolvimento, crescimento, geralmente observada sob uma perspectiva positiva, mas todos sabemos que não são poucas as vezes que ganha conotações não tão positivas.

Assim, fala-se, por exemplo, em evolução do tumor, evolução da doença…

Por sua vez, involução é mais compreendida como um movimento regressivo, processo oposto ao da evolução, retrocesso.

Ainda que a expressão “involução” possa gerar algumas discussões interessantes, que não caberiam aqui, podemos transportar essas duas diferentes condições para a Endodontia.

Você vê a radiografia de um dente íntegro, com polpa viva e observa que não há imagem de lesão periapical. E aí você afirma; não há lesão periapical.

Diante de uma cárie que se instala, microrganismos estão presentes na porção coronária do dente e as suas toxinas alcançam a cavidade pulpar inicialmente via túbulos dentinários.

Não sendo tratada, a cárie avança e expõe a cavidade pulpar ao meio bucal. Agora, não mais somente via túbulos, toxinas e as próprias bactérias estão em contato direto com a cavidade pulpar, que aos poucos vai sendo tomada pelos microrganismos.

O sistema de canais se torna então um ambiente de muita competitividade, como tão bem demonstrou Sunqvist desde 1992 em um clássico da literatura endodôntica Ecolgy of the root canal flora. Nesse momento é elevado o metabolismo no sistema de canais, cujas consequências costumam se manifestar nos tecidos adjacentes, particularmente nos tecidos periapicais.

Como consequência dessa batalha entre agentes agressores vindos do canal e sistema imune surge a periodontite apical crônica, mais conhecida como lesão periapical.

Aconteceu ontem e hoje apareceu na radiografia?

Não. Todos sabemos que a lesão periapical começa a se manifestar desde cedo diante das primeiras agressões microbianas e vai gradativamente se desenvolvendo. Se fizermos um acompanhamento com radiografias periódicas em tempos determinados veremos a sua evolução.

Faço-lhe uma pergunta; se você pegar a radiografia inicial, quando o dente estava “normal”, sem nenhuma imagem de patologia periapical, e comparar agora com a mais recente, com imagem de lesão periapical, você poderá dizer que ali há uma lesão periapical?

Como é, pode ou não pode?

Claro que pode.

É o que você faz todo dia. Desde que o mundo é mundo, nós pegamos uma radiografia e dizemos; “aqui tem uma lesão periapical, precisa tratar o canal”. É ou não é?

O que você faz então?

Faz o tratamento endodôntico, o dente é restaurado e o paciente é acompanhado.

Algum tempo depois, você faz nova radiografia e constata que a imagem da lesão regrediu, está menor. Algum tempo depois uma nova radiografia mostra que ela regrediu mais ainda, está menor que na anterior, até que um dia percebe que ela regrediu completamente, desapareceu.

Você viu o dente “normal”, com radiografia sem qualquer alteração nos tecidos periapicais, viu na sequência o surgimento e evolução da lesão periapical e um dia diagnosticou; “aqui tem uma lesão periapical, precisa tratar o canal”.

Você tratou o canal, viu a lesão diminuir, numa nova radiografia viu-a diminuir mais ainda e finalmente que ela não existe mais.

Faço-lhe agora outra pergunta; você pode dizer que a lesão periapical não existe mais?

Como é, pode ou não pode?

Claro que pode.

É o que você faz todo dia. Desde que o mundo é mundo, nós pegamos uma radiografia e dizemos; “aqui tinha uma lesão periapical, eu tratei o canal e agora ela não existe mais”. É ou não é?

Imagem1

No entanto, agora querem dizer que você não pode mais falar que não tem lesão, a não ser que uma tomografia confirme isso.

Você sabia que quando a lesão periapical “aparece” na radiografia estima-se que cerca de 30 a 40% do tecido ósseo já foi reabsorvido?

Vamos dizer em outras palavras? Quando a lesão periapical “aparece” na radiografia na verdade já existia antes. Só que estava confinada no osso esponjoso. Isso significa que se você fizer uma radiografia periapical “um pouco antes” de ela surgir você não vai detecta-la na imagem.

Nesse momento, se você fizer uma tomografia ela aparece.

Na sua evolução, a lesão periapical envolve as corticais ósseas e aí aparece na radiografia.

Vamos fazer o sentido inverso?

Você tratou o canal com lesão periapical. Na radiografia de acompanhamento dali a algum tempo você percebe que ela está menor, mas ainda “está lá”. Algum tempo depois ela regrediu mais ainda, diminuiu de tamanho.

Nesse processo de involução, deverá chegar um momento em que ela não vai aparecer mais na radiografia, desaparecerá.

Nesse momento em que ela desapareceu na imagem radiográfica, se você fizer uma tomografia ela aparece e aí alguém vem e diz; “tá vendo, não disse, somente com a radiografia você não pode dizer que seu tratamento teve sucesso, pois a lesão não desapareceu”.

Ignora-se então que da mesma forma que nos momentos iniciais da evolução da lesão periapical a radiografia não consegue detectar a sua presença, ela não conseguirá nos momentos finais da involução.

Vamos colocar em valores numéricos.

Vamos pegar aqueles 30 a 40% de tecido ósseo reabsorvido (“destruição” óssea) confinados no osso esponjoso no início da lesão e lembrar que ele não aparece na radiografia.

Quando estivermos no período de regressão, quando a lesão estiver diminuindo de tamanho e atingir os 30 a 40% “iniciais”, a sua imagem não deverá “desaparecer” outra vez porque o osso reabsorvido “volta a ficar confinado no osso esponjoso”?

Percebeu?

Então vamos deixar bem entendido:

Nos momentos iniciais do desenvolvimento da lesão periapical, a radiografia não detecta a sua presença. A tomografia sim.

Nos momentos finais da regressão da lesão periapical, a radiografia não detecta a sua presença. A tomografia sim.

Alguém pode me explicar porque a involução de uma lesão periapical se daria de tal forma que desapareceria da imagem radiográfica mas ficaria indefinidamente “à disposição” da imagem tomográfica, como se somente ela tivesse o poder de revelar a verdadeira condição dos tecidos periapicais?

Seria um castigo dos Deuses da Ciência aos endodontistas para controlar o seu ego por ter este fugido do controle?

Se não entendermos o alcance e os limites de cada passo da endodontia e, mais importante, se não fizermos os nossos alunos entenderem isso, vai ser uma loucura porque serão eles, além da própria Endodontia, os mais prejudicados porque sofrerão cada vez mais a influência de experts. Serão sempre eles, os jovens, que ainda não consolidaram seu conhecimento e têm esses profissionais como referências importantes, os mais prejudicados.

Se não tomarmos cuidado, quando você fizer um tratamento endodôntico e a lesão desaparecer, como fez o expert você ficará se perguntando:

Serah que curou mesmo? Soh a CBCT para dizer….

E aí, tome CBCT.

Desse jeito, nas clínicas de radiologia vão se formar filas de pacientes dos endodontistas para fazer tomografia computadorizada para eles dizerem; “endodontista, durma tranquilo meu filho, posso lhe garantir que não tem mais lesão periapical”.

Ufa, que alívio. Como é bom ter profissionais da Radiologia para nos dizer o que vemos e o que não vemos. O que seria de nós, ignorantes em diagnóstico e prognóstico, se não fossem os radiologistas, se não fosse o Cone Beam?

Ah, como é bom ter bom senso.

Como é bom ter Cone Beam!

Será que agora vamos ter que “tomografar” todo mundo?

Que é isso gente?

Não parece mais sensato pelo menos imaginar que é só uma questão de tempo, ou seja, se dermos um tempo maior, a próxima tomografia também mostrará que a lesão desapareceu?

É claro que diante de qualquer situação fora dos parâmetros normais, qualquer coisa “anormal”, exigirá nova avaliação do caso, onde se incluem novo exame radiográfico e tomografia. Mas de forma criteriosa.

Tal qual a radiografia, a tomografia é a fotografia de um momento, de um estágio da patologia que está sendo tratada. Mas ela não fala da patologia e sim da sua imagem. Ela diz tão somente se a imagem que espelha a reabsorção óssea ainda está presente, mas não diz se está em evolução ou involução.

Ela não expressa a patologia, mas a presença, ou ausência, de um dos seus sinais; a reabsorção óssea.

Não pense que é exagero, mas já há quem diga que o endodontista tem que ter um tomógrafo no consultório.

O que você acha?

A quem interessa isso?

A quem interessa muita coisa que tem sido dita e escrita?

Aliás, pegue essa “perguntinha” e carregue com você daqui por diante. Você vai perceber que em alguns momentos terá vontade de faze-la.

A quem interessa isso?

A tomografia computadorizada de feixe cônico (Cone Beam) é uma ferramenta fantástica, uma a mais de grande valor para o endodontista e precisaremos usar em algumas situações, mas não é um recurso para competir com a radiografia periapical.

O Cone Beam não é um substituto da radiografia.

Obs. Este artigo não se encerra aqui. Terá continuidade.