Um olhar para trás

Na segunda feira (08/10) foi anunciado o Prêmio Nobel de Medicina 2012. Pela descoberta de que células adultas podem ser reprogramadas e se tornar pluripotentes, células-tronco capazes de se converter em qualquer outro tipo de célula do corpo, foram dois os ganhadores: o britânico John B. Gurdon, de 79 anos, e o japonês Shinya Yamanaka, de 50 anos

Além de mais uma grande descoberta do homem para o bem da humanidade, glória, prestígio, fama, um prêmio de 1,2 milhão de dólares, muito a comemorar. Uma coisa que também me chamou a atenção foi o que disse Yamanaka: "A única palavra que me ocorre é gratidão".

A quem será que ele dedica essa gratidão? Aos pais, à esposa e filhos, a alguém que proporcionou a sua caminhada até esse ponto? Alguém da sua equipe? Não faço a menor ideia, a breve reportagem não fala sobre isso. Entretanto, não houve como não associar de imediato ao meu pai.

Muito jovem, saiu da sua cidade, Casa Nova (BA), hoje submersa nas águas da barragem de Sobradinho, e foi para Juazeiro (BA), casado já aos 18 anos. Adotou como profissão ser barbeiro. Aprendeu a fazer barba e cabelo (não era cabelereiro, era barbeiro). Nessa profissão, chegou a fazer a barba de João Gilberto, muito jovem ainda, e Luiz Gonzaga, também ainda jovem, mas já famoso.

Um dia, ao cortar o cabelo de um homem elegante e bonito, meu irmão mais velho, ainda criança, entrou pela barbearia dizendo “painho, mainha mandou perguntar…”. Aquele cliente ficou absolutamente perplexo e não conseguiu conter a pergunta: esse menino é seu filho? É sim senhor. Eu tenho esse e uma menina.

Ali surgia uma amizade improvável entre um homem elegante e bonito e um barbeiro. Certamente imaginando as dificuldades daquele barbeiro para sustentar mulher e filhos, um dia esse homem elegante e bonito perguntou de forma bem cuidadosa, talvez por temer soar como algo humilhante, se ele gostaria de trabalhar como servente no Banco do Brasil. Aquele homem elegante e bonito era um inspetor do Banco do Brasil. Para os mais jovens, o emprego no Banco do Brasil era tudo o que muitos brasileiros queriam ter. Um inspetor do Banco do Brasil então era um Deus.

Servente, meu Deus, servente!!! Servir cafezinho, fazer faxina, lavar vaso sanitário, aquilo era uma ofensa. Para meu pai, aquelas palavras soaram como uma mensagem de Deus, religioso que sempre foi.

Já “funcionário” do Banco do Brasil (daria tudo para ver como meu pai se sentiu naqueles dias), como já vinha fazendo continuou estudando à noite (só teve o estudo primário incompleto), sob a luz de candeeiro (Juazeiro só tinha luz até o começo da noite e até determinada época ele não podia pagar). Foi fazendo concursos e avançando na carreira de funcionário do Banco do Brasil. Não precisava mais daquele homem elegante e bonito, já andava com as próprias pernas.

Tendo acabado de completar 19 anos, fiz a minha primeira viagem para fora da Bahia. Com os dois irmãos caçulas, eu, meu pai e minha mãe pegamos a velha Rural (o nosso primeiro carro, comprado de segunda mão), e fizemos um roteiro fantástico: Aracaju, Maceió e… Recife, a cidade de “Seu” Jaime, aquele homem elegante e bonito.

Meu pai, orgulhoso funcionário do Banco do Brasil, que já tinha “vida própria”, independente de “Seu” Jaime, sempre criava uma oportunidade de estar com ele, de falar com ele. Estava agora, primeira vez que podia fazer isso com a família, mais uma vez agradecendo por poder ser o que era. Conhecíamos ali, eu e meus irmãos, o homem de quem tanto ele falava e de quem nunca esqueceu.

Domingo, 07 de outubro de 2012, dia de eleição. Como faço há cerca de 30 anos fui votar com a minha mulher e as nossas filhas. Depois, todo o dia na casa dos meus pais, o almoço, o jantar. No quarto dele, entre as inúmeras fotos dos filhos, netos, bisnetos, como sempre lá estava a foto de “Seu” Jaime.

Confesso que me emocionei. Meu pai, perto de completar 91 anos, continua com um carinhoso olhar para trás. Nunca esqueceu a dívida de gratidão. Lição que trago comigo.