“Quer melhorar os resultados dos seus procedimentos cirúrgicos? Conheça um protocolo preciso, seguro e completo para cirurgia parendodôntica. Não se esqueça que um dos objetivos é a desinfecção radicular; estamos conseguindo com os tratamentos convencionais?”
Há pouco tempo recebi um e-mail em que um colega fazia essa colocação/pergunta. Um questionamento pobre na sua proposição e que me deixou um pouco desapontado com ele. Jovem, ainda iniciando a carreira e já com um pensamento totalmente equivocado. O pior de tudo é que termina com uma falsa pergunta, que, na verdade, insinua fortemente que os tratamentos convencionais não estão conseguindo alcançar o objetivo de promover a desinfecção radicular.
Como o conhecia, resolvi lhe telefonar para conversarmos sobre a sua indagação/afirmativa. Somente aí fiquei sabendo que a “frase” não era dele. Se sabia de quem era (acho que sim e por essa discrição o elogio) não disse. Só disse que tinha visto na Internet, terra de todos e de ninguém. Fiquei então mais à vontade para conversar. Após a nossa conversa, veio-me o desejo de escrever sobre o tema.
Muitas vezes ouvi de colegas: “hoje eu vivo praticamente de retratamento”. Uma alusão clara ao fato de que o que mais vinham fazendo nos consultórios era retratamento. Como sempre faço, procurei entender o que poderia realmente significar aquela frase.
“Devido às elevadas taxas de insucesso, o futuro da Endodontia está no retratamento”. Essa frase é de ninguém menos que Schilder, Herbert Schilder, um dos monstros sagrados da Endodontia, em editorial escrito por ele no Journal of Endodontics, em 1986.
Vamos ver um pouco mais de perto tanto o dizer dos colegas de que o que mais fazem é retratar canais como a frase de Schilder.
Muitos sabem das minhas dificuldades em conviver com ideias e tendências elitistas/separatistas, mas nesse momento preciso recorrer a elas.
Imaginemos uma cidade qualquer e digamos que nela existem 10 endodontistas de primeira, elite da endodontia. Normalmente, as pessoas de maior poder aquisitivo são tratadas por esses profissionais; Arnaldo, Eduardo, Paulo, José…
Se Arnaldo, um profissional de elite, que atende pacientes de maior poder aquisitivo, diz que está praticamente vivendo de retratamento, é possível que muitos desses pacientes tenham sido tratados pelos colegas que, como ele, fazem parte desse grupo especial de profissionais. Por razões diversas, o paciente pode não querer voltar a aquele profissional que o tratou inicialmente.
Se Eduardo, um profissional de elite, que atende pacientes de maior poder aquisitivo, diz que está praticamente vivendo de retratamento, é possível que muitos desses pacientes tenham sido tratados pelos colegas que, como ele, fazem parte desse grupo especial de profissionais. Por razões diversas, o paciente pode não querer voltar a aquele profissional que o tratou inicialmente.
Se…
Assim, os pacientes de maior poder aquisitivo, que podem frequentar os consultórios de profissionais diferenciados, estão tendo tratamentos e retratamentos endodônticos realizados pelos mesmos profissionais. E é aí que surge uma questão sobre a qual ninguém pensou; se há necessidade de tantos retratamentos, acredito não ser difícil concluir que não estamos sabendo tratar.
A questão colocada por Schilder de que devido às elevadas taxas de insucesso, o futuro da Endodontia está no retratamento diz, com palavras diferentes, praticamente a mesma coisa dita pelos colegas. Schilder acertou em cheio. Faltou, porém, nos dois momentos, a reflexão. Tratamentos bem realizados não costumam levar ao fracasso. Se são tão elevadas as taxas de insucesso, deve-se concluir que os tratamentos estão sendo mal executados. Simples.
Além disso, é possível que Schilder não tenha percebido a gravidade do que estava dizendo, o que torna mais triste ainda a percepção da coisa. É muito fácil, prático, cômodo, simples, até porque financeiramente rentável, perceber que estou vivendo praticamente de retratamento e nada mais ver além disso. É só isso?
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Vejamos essa questão sob outro ponto de vista. No dia em que a Medicina disser “devido às elevadas taxas de insucesso, o futuro da cirurgia cardíaca está em reoperar os pacientes”, o que deverão fazer os médicos? E o que pensaremos nós, pacientes? E você endodontista, vai achar normal? Vai achar interessante quando os médicos disserem estou vivendo praticamente de reoperar os pacientes? Quais serão as chances de que um desses pacientes seja você?
Ainda que tenhamos tido um grande avanço tecnológico nos recursos hoje existentes, como de fato tivemos, o tratamento endodôntico apresenta dificuldades técnicas ainda consideráveis. Ao lado disso, o desconhecimento da ciência endodôntica é chocante, como se pode ver na frase que abre esse texto. Porém, apesar disso, os percentuais de sucesso dos casos bem conduzidos são elevados.
Vamos buscar parte da frase lá em cima? “…Não se esqueça que um dos objetivos é a desinfecção radicular; estamos conseguindo com os tratamentos convencionais?” Estamos sim doutor.
E que não estivéssemos. Vou agora abandonar a expressão que o colega usou e aplicar a que gosto e uso. Imaginar que o controle de infecção do sistema de canais radiculares, eventualmente não atingido pelo tratamento aqui chamado de convencional, será atingido pela cirurgia parendodôntica reflete um grande desconhecimento da endodontia.
O substituto para um tratamento endodôntico mal realizado é um tratamento endodôntico bem realizado, não é a cirurgia, que sempre terá as suas indicações. Não pensar assim mostra desconhecimento da endodontia ou interesses ocultos. Como diz Eça de Queirós*, “ou é má-fé cínica, ou obtusidade córnea”.
Portanto, ao colega que questionou se “estamos conseguindo (promover a desinfecção radicular) com os tratamentos convencionais” eu diria que não só estamos conseguindo como essa é a única maneira de se conseguir. Nesse momento, um conselho, e para isso recorro a Rousseau**: “A arte de interrogar não é tão fácil como se pensa. É mais uma arte de mestres do que de discípulos; é preciso ter aprendido muitas coisas para saber perguntar o que não se sabe”.
* Eça de Queirós – um dos mais importantes escritores portugueses.
** Jean-Jacques Rousseau – importante filósofo, teórico político, escritor e compositor autodidata suíço. É considerado um dos principais filósofos do iluminismo e um precursor do romantismo.