A autofagia do Nordeste

Nordeste

Por Ronaldo Souza

O Nordeste é autofágico

Aquilo devia ter me chocado.

Mas não foi o que aconteceu.

Não chocou e, mais ainda, concordei com o que tinha acabado de ouvir.

Com tristeza, mas concordei.

Em mais uma das conversas que sempre tínhamos, um professor, amigo e brilhante como poucos, me disse.

“O Nordeste é autofágico”.

Era 2006.

Por mais que algo possa parecer provável, a força da probabilidade jamais será maior do que a força do fato.

A viajem que por segundos fiz pela reflexão me permitiu ver o que já sabia e me fez mais facilmente concordar com o que acabara de ouvir.

Tenho uma certa repulsa por homens e mulheres que se permitem subjugar.

Se houvesse alguma virtude no atual presidente da república seria a de não esconder que ele sempre foi e será racista, xenófobo, homofóbico e misógino.

Quando digo “se houvesse alguma virtude” nele é porque o que poderia ser uma virtude, a da autenticidade, uma característica que aquelas mesmas mentes privilegiadas de sempre atribuem a ele, nele não passa de mais uma comprovação da sua absoluta estupidez, que o torna um completo sem noção.

Ser “um completo sem noção” faz com que ele diga as coisas mais estapafúrdias do mundo a qualquer hora e em qualquer lugar, sem saber o que está dizendo.

A ignorância não pede licença.

Toma o lugar.

Não à toa ele é o grande mito dos sem noção.

Na campanha, sempre com a sutileza paquidérmica que lhe é característica, aos seus três vice-presidentes também, ele jamais negou as características que o tornaram desde sempre um completo pateta e sempre mostraram todo o seu desprezo por negros, homossexuais, mulheres e… nordestinos.

Que candidato em plena campanha exporia repetidas vezes o seu ódio por essas sub raças, não fosse ele o mais estúpido dos estúpidos?

Diante desse desastre, a pergunta que não cala e que nos atormenta parece não ter resposta!

O que pensar de negros, homossexuais, mulheres e nordestinos que votaram nele?

O que são de fato e não na aparência esses homens e mulheres?

Não sei, mas homens e mulheres não são.

São, quando muito, protótipos que, em algum momento, tiveram seus projetos abortados e não conseguiram atingir o ponto mais elevado no desenvolvimento:

Ser homem ou mulher de verdade; plenos.

Não parece difícil ver o que historicamente sofreram e sofrem os nordestinos em termos de humilhação e desprezo, momentos em que se revela a enorme pobreza mental e intelectual desse país, vinda todos sabemos de que partes dele.

Vasculhe o mapa do Brasil na sua memória e você as encontrará; muitas vezes ao seu lado.

E por favor, não tentem fazer o velho jogo do cinismo de sempre, negando a verdade que há nisso, levando a conversa para o “ah, você está apelando”, “tá dramatizando “…, pois “baianos” e “paraíbas” identificam com extrema facilidade de onde partem os frequentes ataques à sua dignidade pelo simples fato de existirem.

Os registros da imprensa estão aí para não permitir qualquer tentativa nesse sentido.

Complexo de vira-latas

E o que fazem alguns nordestinos?

Põem-se de cócoras em movimento de submissão.

A absurda, inconcebível e injustificável postura que esses homens e mulheres assumem reflete a sua frouxidão, muitas vezes pelo desejo de serem agradáveis a quem julgam serem superiores a eles.

Não se trata simplesmente de confundir o bem tratar, o bem receber, o “braços abertos”, com a docilidade exagerada e a disponibilidade eterna.

É o desejo de ser aceito como igual, “conceito” que tantas vezes buscamos na luta para não sermos tão desiguais, mas que virou uma expressão boçal, “ser igual”, tantas vezes utilizada para definir “iguais” como especiais; os eleitos pelos deuses do viver bem.

Tudo para se sentirem aceitos.

“Só tenho a agradecer a esse grupo, nata da… por me permitir fazer parte dele”.

E aí se sentem aceitos.

Não são.

Também aí confundem as coisas.

Confundem permissão para participar com espaço para ser.

O bem tratar, o bem receber, o “braços abertos” raras vezes encontra reciprocidade.

Experimentem demonstrar conceitos diferentes, ideias próprias, que confrontem as já existentes e estabelecidas por eles.

Experimente conquistar espaço próprio.

Você já ouviu falar de boicote, sabotagem…?

Reserva de mercado, como ocorre entre empresas, já que alguns estão hoje intimamente ligados a elas.

Frouxidão que é puro reflexo da ignorância sócio-política que possuem e que não lhes permite afirmarem-se como pessoas importantes que poderiam ser.

Afinal, fazem parte da segunda região mais populosa do país.

Fazem parte de uma região rica como poucas em música, cinema, arte, folclore, culinária, grandes escritores, ou seja, de riqueza cultural inigualável.

Mas, nada disso significa alguma coisa para eles, porque, no fundo, reflete o quanto são absolutamente iguais aos que hoje comandam os destinos desse país.

Essa afinidade, envergonhada e trancafiada durante muito tempo no íntimo de suas almas, rompeu todas as fronteiras da civilidade quando finalmente encontrou terreno fértil no atual governo para assumir a pequenez dos pigmeus que são, e explodiu em palavras, gestos e ações de incontrolável preconceito e ódio.

Como os nossos atuais dirigentes, além de completos idiotas, muitos já exibem sem pudor a sua canalhice.

Tudo em nome de uma subserviência histórica, explicada pelo complexo de vira latas.

Sofrem de problemas crônicos na coluna vertebral por curvarem-se em excesso diante do sul maravilha, expressão muito conhecida no Nordeste mas que, apesar do nome, tem muito mais a ver com o encanto por estados do Sudeste, em particular por São Paulo.

Mero reflexo da enorme lacuna na formação, que, numa amplitude maior, também apresenta o brasileiro em relação a alguns países, muito particularmente o de Trump, agora tão mais próximo do nosso pela grande semelhança no desequilíbrio mental e na estupidez incomensurável dos seus respectivos presidentes.

Refiro-me particularmente a essa classe média ignorante e medíocre, tão bem definida por Marilena Chaui.

Definição que causou muita revolta neles, por não perceberam que o que os incomodou não foi ela ter tocado na ferida; na verdade, ela feriu a ferida.

A ferida da alma.

Classe média onde vamos encontrar os nossos profissionais liberais, os nossos “mestres”, os nossos “doutores”, os nossos “professores”, todos entre aspas sim.

Professores, meu Deus!!!

Muitos mal conhecem a sua especialidade.

Há exceções?

Sim, claro, mas cada vez mais crescem as razões para duvidar disso.

Chega de contemporizar.

Já basta o convívio que nos é imposto em nome das relações sociais e profissionais.

É insuportável atura-los, agora que mostraram e se entregaram com vontade ao que há de pior e mais vil em termos de sentimentos da raça humana.

As insinuações que sempre ouvimos, as depreciações que testemunhamos, os dedos sempre apontados para os males que só os outros possuem, como que a tentar mostrar a sua diferenciação por serem “homens de bem”.

São iguais a eles, nossos dirigentes.

Representam o que há de mais deplorável no ser humano.

Escória.

Covarde como sempre, o presidente já recuou e disse que não ofendeu os nordestinos.

E nos chama de “irmãos”.

Consegue negar o que está registrado em microfones e câmeras.

Por que recuou?

Porque alguém o advertiu que o Nordeste é a segunda região mais populosa do país.

E que ele, na sua estonteante estupidez e pequeno mundo povoado por milicianos, esquece do potencial eleitoral.

Nordeste que deu a ele grande quantidade de votos, com participação decisiva dos nossos profissionais liberais, nossos “mestres”, nossos “doutores”, nossos “professores”.

Que sentimento posso ter por esses homens e mulheres que se permitiram subjugar?

Não queremos ser locomotiva de nada.

Só queremos viver bem.

Com a alegria que sempre tivemos.

Temos as cores que ninguém tem.

O azul do Céu que ninguém tem.

Os raios de Sol num verão que a ninguém mais coube e que não só aquece os nossos corpos; ilumina as nossas almas.

E o nosso pôr do Sol?

Você morre todos os dias com ele e renasce na manhã seguinte, quando ele vem lhe despertar na sua janela; “ei, ei, acorde, vamos viver mais um dia, dia que foi feito para você”.

E permite que seu corpo se espreguice com vontade, porque a alma, ah essa já está acordada e viva.

Você conhece o céu e as estrelas das noites do sertão nordestino?

Você já viu alguma vez o luar do sertão, banhado por milhões de estrelas?

https://www.youtube.com/watch?v=KzR9R5-6fBk

Somos brancos, negros, índios, homens, mulheres, gays, lésbicas, somos tudo, num Brasil de muita gente, porque tudo é gente, gente como a gente.

Por que nos desejam tanto mal, até a morte?

Nunca fizemos isso com vocês.

Se temos o que vocês não têm, já perceberam como os nossos braços estão sempre abertos, aí sim, no abraço apertado que vocês tanto estranham.

Somos calor, energia, precisamos tocar, sentir o outro, porque sentir é ver a alma

Não nos levem a mal, somos assim.

O abraço apertado não é para sufocar, é uma forma que inventamos de dizer; seja bem-vindo.

É o que de melhor temos para compartilhar; afeto.

E não escolhemos a quem dar.

Obs. Quando estava fechando este texto recebi esse vídeo, enviado por uma de minhas irmãs. É de José Barbosa Júnior (com adaptações), de 2016, mas nunca foi tão atual. Ponho aqui em homenagem a todos os profissionais liberais, mestres, doutores e professores, particularmente os do Nordeste, que se perderam e contribuíram para o maior apequenamento da história desse país.