E a sociedade, como fica?

Publiquei aqui no site no dia 14/08/2010 um texto intitulado Stuart Angel (clique aqui para ler) e nele chamava a atenção para a imagem distorcida que a sociedade tem sobre “guerrilheiros assassinos”.

Sempre fiquei a pensar o que leva um homem ou uma mulher a abandonar bens materiais, conforto, família, e sair vida afora lutando por uma causa da qual não dependeriam. Talvez não tenha encontrado ainda a resposta. Tendo ou não, sempre guardei comigo um pouco de inveja deles.

Apesar de saber da sua competência, até por depoimentos de colegas do Rio Grande do Sul, onde foi secretária municipal da Fazenda de Porto Alegre e secretária estadual de Minas e Energia do Rio Grande do Sul, restava saber se Dilma Rousseff se sairia bem na campanha para a presidência da república.

Como vimos, uma campanha violenta, de baixíssimo nível. Entre tantas coisas, via a revolta de parte da sociedade pelo fato de uma terrorista assassina ser candidata ao mais alto cargo do Brasil. Fiquei muito confuso. Aquilo que havia de mais bonito, de mais romântico, de mais heróico na vida de Dilma Rousseff, era agora, devidamente disseminado na população, o mais covarde dos atos.

É da sociedade que surgem dois personagens muito parecidos: o eleitor e o torcedor de futebol. Individualmente, ponderam, muitas vezes com lucidez, mesmo diante da inexplicável paixão por um time de futebol. Como coletividade, também muitas vezes perdem essa capacidade.

A imprensa sabe, e explora muito bem, que ambos, eleitor e torcedor, tendem a reagir igualmente quando constituem a massa: perdem, parcial ou totalmente, a capacidade de discernir e se deixam levar mais facilmente.

E assim, a candidata Dilma Rousseff foi tratada: como uma guerrilheira assassina. E para completar, adicionaram a essa qualidade outras, como sapatão (faço questão de usar essa palavra porque, como era o desejo, agride mais), matadora de criancinhas, chefe de quadrilha, anti-religião, etc.

A presidente eleita Dilma Rousseff, entretanto, mereceu outro tratamento. Mal terminou a eleição, a imprensa se derreteu em elogios a ela. A Folha, que, entre outras coisas, durante a campanha forjara uma ficha falsa do DOPS sobre Dilma Rousseff (poucos ficaram sabendo, mas o jornal publicou um pedido de desculpas, mesmo que tenha sido em um canto de página, ao contrário das manchetes de dias seguidos com a ficha falsa), e o Estadão fizeram reportagens muito elogiosas, em um total desencontro com o que até então haviam publicado. Mas, sem dúvida, a Veja e o Jornal Nacional se superaram.

A edição de segunda-feira, 01/11/2010, do Jornal Nacional parecia dirigida por Fellini, tamanha a emoção. Uma produção hollywoodiana que quase me fez chorar. A guerrilheira assassina era agora uma mulher guerreira. William Bonner, que tinha sido tão deselegante com ela durante a campanha, com nítido encurvamento da espinha dorsal estendia um tapete vermelho e tornava-se o fã número 1 de Dilma Rousseff. Por sua vez, a Veja dedicou um número especial à presidente eleita, com elogios inimagináveis.

Diante de uma transformação tão rápida, o jornalista Luis Nassif foi muito feliz:

…Foi curiosa a reação dos comentaristas em geral. Muitos elogios, a constatação de que ela não era bem aquilo que se julgava que fosse, referências à clareza de idéias, a afirmação de que, finalmente, se sabe o que ela pensa.

E o que se viu foi a mesma Dilma Ministra das Minas e Energia, Ministra-Chefe da Casa Civil e candidata a presidente da República, com as mesmas idéias e propostas.

Ontem mesmo, no Valor Econômico, o presidente do Bradesco Luiz Carlos Trabucco Capi mostrava o que deverá ser o governo Dilma: investimento social, uso do pré-sal para políticas industriais e sociais, ênfase em programas tipo Minha Casa, Minha Vida. Ou seja, para o presidente do segundo maior banco privado brasileiro, nunca houve dúvidas maiores sobre como seria um governo Dilma.

No entanto, durante toda a campanha, Dilma foi apresentada como assassina, terrorista, sapatão, matadora de criancinhas, chefe de quadrilha, anti-religião etc. Qualquer tentativa de mostrar que não era isso resultava em reações agressivas, preconceituosas.

O que teria ocorrido para, apenas dois dias depois, ser saudada como uma presidenta de bom senso, no qual os mesmos jornais depositam esperanças de um bom governo?

Simples: acabaram as eleições.

E a sociedade, como fica? Foi (mais uma vez) manipulada pela imprensa? Sim. Ou alguém ainda tem dúvida? Mas, uma coisa me deixa perplexo.

O que significa Universidade? Será que é só “uma edificação ou edificações onde funciona uma instituição de ensino superior”, uma das definições do Novo Dicionário Aurélio?

Será que foi para o ingresso nessa universidade que meus pais saíram da nossa querida Juazeiro (Bahia) e enfrentaram dificuldades, como milhares de outros pais com seus filhos, para que eu, o primeiro membro de toda a família, pudesse ser um doutor?

Não, não foi. Mesmo sabendo do nenhum conhecimento do mundo dos doutores que meus pais possuíam, tenho absoluta certeza de que não era essa a universidade que eles queriam para os filhos deles. Certamente, imaginaram, na sua doce pureza, que a Universidade nos daria o conhecimento para contribuir com o desenvolvimento da raça humana.

Seria crueldade, ou omissão, da minha parte “aceitar” a manipulação de parte da sociedade porque não possuem o conhecimento de nível superior? Não parece uma coisa esnobe? Permitam-me aceitar isso sem que soe como algo muito pedante. Mas, onde estão os doutores?

Onde estão os homens que, por terem esse conhecimento superior, também se deixam manipular fácil e docilmente por uma imprensa que nada tem a ver com o bem estar do povo? Será que, por não sermos povo (não é assim que muitos pensam?), isso não nos afeta? Como sociedade, só nos cabe ratificar a afirmativa de Joseph Pulitzer de que “com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil quanto ela mesma”?

Não se trata simplesmente da escolha desse ou daquele candidato. Não, argumentar assim é absoluta
mente incompatível com os nossos conhecimentos superiores. Justificar-se o voto porque membros desse ou daquele grupo político, portador de um discurso ético, cometeram deslizes vai inteiramente de encontro à nossa inteligência. O pior de tudo, não é esta a razão. É algo mais, muito maior. É aquele algo que guardamos no fundo, bem lá no fundo, da alma.

E é esse algo que agora se manifesta com uma violência que se imaginava não existir mais.

“Vocês não sabem o que é ter olhos num mundo de cegos… sou simplesmente a que nasceu para ver o horror… Se tivesses olhos para ter que ver o que vejo, quererias ficar cego”.*

* José Saramago, no livro Ensaio sobre a cegueira.