Assim caminha a humanidade *
Passamos vários carnavais juntos, eu e Sérgio, médico, radiologista, sem dúvida, o maior amigo que já tive. Constituímos o que se costuma chamar de amigo-irmão. É aí que muitas vezes a vida, se não é cruel, tem momentos de crueldade. Ela nos leva por diversos caminhos, o que com alguma freqüência separa os amigos. Apesar da ausência de convivência, acho que ele será sempre o maior amigo que pude ter.
Ficávamos sempre no que chamávamos de QG (quartel general), um apartamento que era, como o nome diz, o nosso quartel-general durante todo o carnaval. Ali, desde a sexta-feira (o carnaval de Salvador ainda começava no sábado), ficávamos até a quarta-feira de cinzas. Tinha pão, queijo, presunto, leite, ovos, um pequeno arsenal para recompor as energias, e muita, muita cerveja e whisky.
Lá nos abastecíamos para ir para a avenida. Durante alguns belos anos saímos no Bloco do Jacu (se não me engano, apenas em um carnaval) e depois no Amigos do Barão, blocos inesquecíveis do carnaval de Salvador. À noite íamos para os bailes nos clubes (ainda existiam), principalmente o Clube Bahiano (com h mesmo) de Tênis, e quando voltávamos destes, geralmente pelas 6 da manhã, dormíamos, para recomeçar tudo por volta das 10 ou 11 horas, lógico que também da manhã. Bom demais. Em alguns desses carnavais outros amigos também ficaram e outros tantos por lá circulavam o tempo todo. Por lá também passaram algumas amigas. Uma maravilha.
Foi em dois ou três desses carnavais que também ficou um dos nossos amigos, um engenheiro. No mesmo esquema, durante cerca de três carnavais ele foi membro do QG. Em uma dessas vezes, depois de acordarmos, já naquela faixa de tempo em que reaquecíamos os motores, entre as 11 e 15:00, estávamos na janela do apartamento conversando. Décimo quarto andar, edifício Serra do Crepúsculo, Ladeira da Barra, com o mar do mundo todo à nossa frente e ao fundo a Ilha de Itaparica (será que existe algo melhor?), ele disse: “um dia ainda vou ser rico, não sei como, mas vou ser, nem que tenha que casar com mulher rica”. E arrematou; “meu sonho é ter uma construtora como a …”.
Conseguiu os dois. Tornou-se um importante empresário, dono de grande construtora, um homem poderoso. E, é lógico, não podia ser diferente, bajulado, paparicado.
Uma vez, durante o coquetel de inauguração da sede de um clube social que a sua empresa tinha construído, eu o vi com toda a sua diretoria, ou pelo menos boa parte dela. No mundo contemporâneo, onde tudo é possível, onde tudo se faz, onde se faz qualquer coisa para atingir os objetivos, a minha estúpida ausência de contemporaneidade me tortura. Vender a alma sempre foi demais para mim. Não consegui ir até ele e cumprimenta-lo, não fui capaz. Fiz de contas que não vi.
Há alguns anos soube que, percebendo a pobre relação entre ele e os filhos, começava a leva-los à Fonte Nova para ver o Bahia jogar (quando ainda valia a pena, e agora começa a valer outra vez). Quantos desejariam e desejam ser ele. Por outro lado, em quantos momentos ele deve ter sentido um vazio enorme e buscou o conforto no reencontro com os filhos. Que bom esse reencontro, melhor seria se fosse algo tão forte que o fizesse repensar os valores da vida.
Acredito que muitos conhecem histórias parecidas com essa. Conheço algumas. Quantas vidas perdidas, vazias, uniões desastradas (a rigor, algumas nunca existiram), por interesse. Apesar dos óbvios reflexos (será que não são tão óbvios assim?), vemos os filhos demonstrarem comportamentos semelhantes ao visualizarem "bons partidos”. Uma loucura.
A vida tem ou não tem momentos de crueldade? Deu saudade dos tempos de carnaval. Por falar nisso, Sérgio, um grande abraço, um abraço de amigo-irmão.
* “Assim caminha a humanidade” é o título de um antigo e belo filme com Rock Hudson, Elizabeth Taylor e James Dean, cujo título original é Giant.