A geografia condena

Ao longo dos anos fui vendo em mim o psicólogo, que não sou, o conhecedor de história, que gostaria de ser, o escritor que nasceu recentemente, mas a quem falta competência. Vi em mim muitas coisas, sem ser nenhuma delas. Isso traz um razoável nível de inquietação intelectual.

Sem ter as armas para isso, busco compreender a alma humana. Tamanha pretensão que muitas vezes leva ao desencanto diante de algumas coisas. Somente com as armas às quais me referi poderia tentar fazer isso, pois só assim poderia ter a devida isenção de ânimos, ou seja, não me envolveria passionalmente, ou me envolveria menos, e, portanto, não sofreria, ou sofreria menos. É a noção de que muitas coisas escapam da minha compreensão que traz esse desconforto, como buscar entender, sem conseguir, determinados comportamentos.

– Há alguns anos Paulo Maluf foi a Washington Olivetto* para que este assumisse a sua campanha política. Algumas agências de publicidade não fazem campanhas políticas, entre elas a W/Brasil, de Olivetto. Foi esta a sua ponderação para não assumir a campanha, ao mesmo tempo em que sugeria um outro publicitário: Duda Mendonça**, publicitário baiano que já naquela época começava a despontar como um dos grandes do Brasil.

“Olivetto, eu venho aqui pedir um computador de última geração e você me sugere um computador boliviano”. Com essa resposta Maluf recusou a sugestão. Alguns poucos anos depois, em outra campanha, Maluf era eleito governador do estado de São Paulo. Quem estava à frente da campanha? O computador boliviano.

– Nizan Guanaes*** via todos os dias operários trabalhando sem nenhuma segurança na obra em frente à sua agência. Aquilo incomodava bastante, até que um belo dia, tendo chegado ao seu limite, foi à construção e falou com o responsável pela obra da sua preocupação e mesmo indignação pelas condições de trabalho (na verdade, a ausência delas).
“Nem se preocupe, não vai ter problema”, foi a resposta que obteve.

Um dia chega ao escritório e vê uma pequena multidão naquele local. Vai até lá e procura saber do que se trata; um operário tinha caído de um andaime e morrido. Vai reclamar do mestre de obra, da advertência feita dias atrás por ele mesmo, da sua negligência, etc. Ouviu.
“Quem vai sentir falta de mais um baiano que morreu”?

– Uma questão bioética que já existe há algum tempo, o problema da pesquisa científica em seres humanos e mesmo em animais de laboratório, foi resolvida por um professor de endodontia de uma importante universidade brasileira.
“Sem problema, usa os baianos como cobaias… não servem para nada mesmo”.

Entrevistas, reportagens, retrospectivas. Sempre busquei em tudo que pude. Quis um pouco mais. Parti para ler alguns textos e terminei dando de cara com Gilberto Freyre**** e seu livro Casa Grande e Senzala, escrito em 1933. Sempre quis ler esse livro. Fui ler. Está lá a explicação para esse arianismo.

No livro que até hoje é tido como um dos mais importantes na história da formação da sociedade brasileira, pode-se observar com muita clareza o surgimento de castas especiais, hoje bastante conhecidas como elite. Há vários outros registros desse tipo na nossa história. Uma elite formada por homens que até hoje choram a não descendência pura européia. Mesmo assim, pensam e agem como seres superiores. São superiores. São arianos.

Ah! Ia esquecendo. Segundo Gilberto Freyre “todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro”.

 

Obs. Os dois primeiros episódios foram extraídos do livro “Na toca dos leões”, de Fernando Morais*****, que fala sobre a vida de Washington Olivetto. O terceiro foi observado em salas de aula.

* Washington Olivetto – Paulista, dono da W/Brasil, agência de publicidade sediada em São Paulo, um dos publicitários mais importantes do país.
** Duda Mendonça – Baiano, dono da DM9, agência de publicidade sediada em São Paulo, um dos publicitários mais importantes do país.
*** Nizan Guanaes – Baiano, dono da África, agência de publicidade sediada em São Paulo, um dos publicitários mais importantes do país.
**** Gilberto Freyre (1900-1987) – Pernambucano, sociólogo, antropólogo cultural, historiador, escritor, respeitado em todo o mundo. Já a partir dos anos 30 era recebido por presidentes, reis e rainhas do mundo todo. Homem rico, filho de senhores de engenho, sofreu pressões políticas e familiares, mas mesmo assim, estudou, conheceu como poucos e mostrou a formação da sociedade brasileira.
***** Fernando Morais – Mineiro, jornalista, político e escritor, cuja obra em boa parte é constituída por biografias e reportagens.