Quando faço uma música é como se escrevesse uma carta para a posteridade; não espero resposta
Por Ronaldo Souza
Por que, de repente, cedo da manhã, Heitor Villa-Lobos me aparecera.
Por que aquela frase de que tanto gosto?
Com essa lembrança, as Bachianas Brasileiras.
O compromisso com a música, o compromisso com a posteridade que, na verdade significa, quem sabe, o encontro com a imortalidade.
O artista, o poeta, também um artista, tem um poder que não foi dado aos mortais; o diálogo com a posteridade.
A imortalidade.
Aquilo tudo ficou solto no ar e parecia que se perderia.
À noite, conversando com a minha mulher, televisão ligada, começou o programa “Altas Horas”, de Serginho Groisman.
Gosto dele, mas ia desligar por conta dos últimos programas.
Seria mais um cheio de sertanejo, axé…?
Mas ele começou já mostrando o convidado daquela noite.
O ex-pianista João Carlos Martins, que se tornara maestro pelo ocorrido com as suas mãos.
Fiquei.
Era a repetição dos 10 anos do programa, agora dentro da programação dos 20 anos.
E lá estava ele, João Carlos Martins, conversando ao vivo de sua casa com Serginho Groisman.
Tocando piano, graças às luvas criadas especialmente para ele, que voltou a tocar piano com os dez dedos.
Um presente para todos nós.
E nessa repetição dos 10 anos, com a participação especialíssima de Milton Nascimento, estava a orquestra de João Carlos Martins.
A Orquestra Bachiana Filarmônica SESI/SP.
Orquestra Bachiana!
Meu Deus!
Se há um Deus, Ele tinha aparecido para mim, não num pé de goiaba, mas num momento que se anunciou sem que eu sequer percebesse.
Inspirou-me com a lembrança de (Heitor) Villa-Lobos e das “Bachianas Brasileiras”, a mais importante de sua obra.
E ali estavam de volta as Bachianas de Villa-Lobos, através da Bachiana de João Carlos Martins.
O programa seguiu e foi encerrado com o maestro João Carlos Martins regendo a sua Bachiana, tocando a música “Theme D’amour”, de Ennio Morricone, para o filme Cinema Paradiso.
Veio-me o filme, um dos mais lindos que já vi.
Um verdadeiro hino ao cinema.
Veio-me a música, aquela coisa linda, que penetra em você e invade a sua alma.
Uma invasão doce, reconfortante, que inunda sua vida de paixão e beleza.
Se há um Deus, ali estava Ele novamente.
Permitindo-me sonhar outra vez.
Quando terminou o programa, corri para ouvir Theme D’amour, agora com o próprio Morricone.
Era 1:10 da madrugada.
E ouvi.
E ouvi de novo.
Madrugada avançando e quando me vi estava escrevendo.
Durante mais de 2 horas fiquei ouvindo esse que é um dos grandes compositores do mundo, particularmente do cinema.
E assim Ennio Morricone foi regendo a minha madrugada, a mais doce e forte desses últimos tempos.
Se há um Deus, Ele estava outra vez comigo naquele momento.
E me fez chorar, tamanha a emoção que tomou conta de mim.
A emoção que, inexplicavelmente, como que atendendo a um grito de socorro, explode no peito.
Um momento divino.
O de um sonho que se renova.
Que se renova e faz despertar.
Para dizer que o direito de sonhar sempre exigiu luta.
E não haverá de ser diferente agora!
Essa é a nossa carta para a posteridade.