Os malditos

Por Ronaldo Souza

“As pessoas hoje não pensam mais”.

“As pessoas estão muito mal-educadas”.

“As pessoas estacionam nas vagas dos idosos, nas vagas especiais”.

“As pessoas estão cada vez mais mal-educadas no trânsito”.

“As pessoas estão ficando cada vez mais burras”!

“Tá uma loucura”.

Você certamente já ouviu alguma coisa desse tipo, ou até várias delas, quem sabe todas!

Não há um encontro, uma reunião, um jantar, um coquetel, uma qualquer coisa, em que não se ouça coisas assim.

De uma coisa tenho certeza.

Você não é uma dessas pessoas.

Nem eu.

Ele também não.

Quem será, então?

De uns tempos para cá todos vivem sugerindo que “as pessoas precisam pensar fora da caixinha”.

Não há mais quem pensa dentro dela.

“Coachs”, “digital influencers”, “youtubers”, essas categorias profissionais que resolvem todos os problemas dos outros estão em alta.

A vida passa e nos tornamos alheios a ela, não tomamos conhecimento.

Aí vem alguém e resolve o nosso problema.

E o nosso problema é a nossa vida.

Da qual não tomamos conhecimento.

Não é sensacional?

Essa categoria de pessoas, essa profissão de resolvedores, não é nova.

Vamos lá!

Vamoa à sessão “mexendo com coisas imexíveis”.

Que São Protetor dos Separados me proteja.

Encontro de casais.

Ainda se faz?

Parece que havia sempre um orientador, um palestrante, algo assim, aconselhando e orientando aos casais desenamorados a se enamorarem outra vez.

Alguém vem e diz ao homem e à mulher como se enamorar outra vez da mesma pessoa.

Deve ser complicado, não é mesmo?

Criam-se protocolos de gestos e ações.

Importa saber o que teria acontecido para chegar a aquele ponto?

Pararam para pensar sobre isso?

Nunca ocorreu que com seus encontros e desencontros, simplesmente, mais uma vez, a vida resolvera romper com o “até que a morte os separe”?

Não nos olhamos, não nos vemos, não nos conhecemos.

E ali estava a vida que não nos ensinam.

A vida como ela é!

Há como ensinar?

Havia situações pitorescas, como uma em que o coach que ensinava a como manter os relacionamentos já estava no quarto casamento!

Mas precisamos sempre de uma saída, uma válvula de escape.

E, aparentemente, tem sido mais fácil negar-se a vida.

A vida não pode ser como ela é.

Vive-se então o como deve ser.

E aí não são poucas as vezes em que a vida se torna uma farsa.

O ritmo passa a ser outro.

Os eventos de algumas categorias profissionais, de algumas especialidades em particular, têm destinado espaços generosos, a abertura do evento por exemplo, a palestras de profissionais que se tornaram especialistas no assunto, alguns dos quais muito competentes.

Há, porém, uma “regrinha”.

Velada.

Essas palestras não devem trazer desconforto à plateia.

Diz-se o que se quer ouvir.

Não se deseja que a vida como ela é seja exposta ali, afinal, alguns eventos se tornaram mais entretenimento e lazer do que qualquer outra coisa.

Como diz Gonzaguinha:

E a plateia ainda aplaude, ainda pede bis
A plateia só deseja ser feliz

Charmoso e sedutor, o sucesso se faz irresistível.

Como alcança-lo passa a ser a grande meta.

O que é perde espaço para o que precisa ser.

Assim, outra vez, entram em cena aqueles que sabem dizer como chegar ao sucesso; os resolvedores de problemas dos outros.

O conhecimento perdeu a sua importância e não é incomum que muitas vezes se torne um incômodo, um desconforto a mais.

Sem que se perceba, porém, o desconforto está ali, presente, incomodando, gerando insatisfação, desencantamento e ansiedade.

É do que fala Rubem Alves, no seu maravilhoso texto Saúde Mental.

Veja o que diz ele:

“Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento. Se há livros do Dr. Lair Ribeiro, por que arriscar-se a ler Saramago?… A saúde mental é um estômago que entra em convulsão sempre que lhe é servido um prato diferente. Por isso que as pessoas de boa saúde mental têm sempre as mesmas ideias. Essa cotidiana ingestão do banal é condição necessária para a produção da dormência da inteligência ligada à saúde mental.”

Entretanto, para o bem da raça humana a história registra a presença de homens e mulheres que rompem com o banal, com a zona de conforto.

Veja o que diz Freud, no seu livro “O Mal-estar na Civilização”:

“Existem certos homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão”.

Inquietos, esses homens inquietam a alma humana.

Tiram-na do bem estar da irreflexão.

E por isso pagam um preço alto; tornam-se malditos.

São assim apresentados por Jack Kerouack:

“Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que veem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas…”

Observe com atenção que você os reconhecerá, inclusive na sua profissão.

Eles parecem insistir em ir na contra mão, contra a corrente.

Não, não é um querer, tem outro nome.

Compromisso.

Com algo muito maior.

Com algo que muitas vezes não conseguem sequer identificar direito, mas do qual não conseguem fugir.

Para eles, é muito comum que se fechem palcos e cortinas.

Eles não podem ser ouvidos.

São pinos redondos difíceis de encaixar num buraco quadrado.

Eles costumam gerar desconforto.

Não apresentam forma geométrica definida.

Não podem ser catalogados como pessoas do bem.

Já ouviu falar de Gonzaguinha?

Era um deles.

Quando eu soltar a minha voz
Por favor entenda
Que palavra por palavra
Eis aqui uma pessoa se entregando…

https://www.youtube.com/watch?v=JsMXDG_MK4g