Por Ronaldo Souza
De repente Gerson irrompeu no gramado como que atingido por um raio, despejando toda a indignação do mundo.
Acusava o desconhecido jogador do Bahia, Índio Ramirez, colombiano, de lhe ter dito; “cala a boca, negro!”
Que sensação deve sentir uma pessoa nessas horas?
De ira, claro, dirão muitos, quem sabe todos!
Mal terminara o jogo, eram os mais diversos possíveis os comentários em apoio a Gerson, vítima de injúria racial.
O próprio presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, ligou pessoalmente prestando toda solidariedade a ele. Além disso, a nota oficial do Bahia dizia “que é indispensável, imprescindível e fundamental que a voz da vítima seja preponderante em casos desta natureza”.
Nenhum outro apoio poderia ser mais emblemático do que esse.
Nada mais justo, afinal, sob qualquer perspectiva, o racismo é altamente deplorável e condenável.
Assim, entendendo a sua posição e o papel que lhe cabia, o Bahia prestava solidariedade à vítima.
Por entender perfeitamente o que lhe cabia fazer, o Bahia também tratou de afastar o acusado, o seu jogador, Índio Ramires, das atividades do clube.
O prejuízo era enorme, pois, como reconheceram narradores e comentaristas de diferentes emissoras, Ramirez foi decisivo no jogo.
Mais importante, porém, do que a qualidade técnica demonstrada, importantíssima para as próximas partidas, o Bahia entendeu que afastá-lo era recomendável, até para preservá-lo.
Naquele momento, ao afastá-lo, o Bahia não estava aceitando o veredito de culpado, já emitido pela imprensa e pelo Flamengo. Muito menos o estava acusando, pelo contrário. Ao entender que sua missão teria que ir além do gramado, afastou-o, mas, de imediato, foi prestado ao jogador o devido acompanhamento psicológico.
O Bahia mostrava que suas ações sociais, através do Núcleo de Ações Afirmativas, não são “da boca pra fora”. A compreensão demonstrada por sua diretoria, tendo à frente o presidente Guilherme Bellintani, do momento que se vive mostrava porque esse clube hoje é reconhecido nacional e internacionalmente como o mais progressista do Brasil.
O pesadelo
No início da semana após o jogo, Flamengo e Gerson compareceram à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância para o depoimento de Gerson e abertura de inquérito de investigação.
A queixa era de injúria racial, que teria sido cometida por Ramirez contra Gerson.
Ao mesmo tempo em que abria o inquérito, o Flamengo encaminhou o processo ao STJD e à polícia e contratou peritos para fazerem a leitura labial e elucidar o que de fato teria sido dito.
O mundo desabava sobre a cabeça daquele garoto de 23 anos que saíra da Colômbia, seu país, para construir um futuro nesse imenso país/continente, o Brasil.
Diante das câmeras e microfones do mais poderoso sistema de comunicação do país, os dois peritos confirmaram a injúria racial; a palavra “negro” tinha sido pronunciada.
Estava confirmada a injúria racial.
Levada com grande ênfase aos quatro cantos do país e provavelmente além do nosso jardim, antecipavam-se julgamento e condenação do jovem jogador.
O que deve passar nessas horas na cabeça de um garoto de 23 anos que se vê diante de um inquérito policial de injúria racial aberto contra ele, recém-chegado a um país inteiramente desconhecido?
Terá sentido o peso da veemência do julgamento e condenação antecipados que parte da imprensa e da sociedade promoveram?
Como seria a justiça desse país/continente em que ele imaginara viver o seu sonho?
Ela, a justiça brasileira, se deixaria levar pela força do quarto poder?
Ela, a justiça brasileira, se permitiria ser influenciada pelo poder daquele que é tido como o mais importante e querido clube do país?
Ela, a justiça brasileira, em algum outro momento teria tido experiência ou conhecia algum episódio de condenação sem as devidas provas?
Qual seria a postura dos torcedores? Apoiariam a sua condenação por convicções pessoais e não provas?
Qual seria a postura do clube que o contratara? Teria coragem e iria enfrentar um processo que nem sempre corre nos trilhos?
Sonhos não morrem
No horizonte sombrio, o Flamengo tinha surgido com o que parecia ser a evidência final: uma discussão entre Ramirez e Bruno Henrique, outro jogador do rubro negro carioca, na qual os peritos do Flamengo afirmaram ter havido a injúria racial.
Ao mesmo tempo em que “surgiam” evidências mais fortes, dessa vez “comprováveis”, desapareciam do cenário aquelas que deram início a todo o processo e que condenavam o jogador do Bahia. É que nada que comprovasse a injúria racial de Ramirez a Gerson, absolutamente nada tinha sido encontrado.
Nada se confirmara.
E isso trazia prejuizos claros ao julgamento/condenação já perpetrado.
Para Flamengo e Gerson, as esperanças de confirmação repousavam agora na ríspida discussão de Bruno Henrique com Ramirez.
Foi aí que entraram em cena os peritos contratados pelo Flamengo, que afirmaram que Ramirez teria dito sim a palavra “negro”.
Estavam salvos.
Havia, porém, um detalhe que não tinha como deixar de mencionar; o comportamento xenofóbico (crime com a mesma pena do racismo) por parte de Bruno Henrique ao chamar Ramirez de “gringo de merda”.
Para o torcedor, e o Flamengo se tornara um, o “jogo” estava empatado.
1 X 1.
A injúria racial de Ramirez contra Bruno Henrique (e não contra Gerson) versus a xenofobia de Bruno Henrique contra Ramirez.
Não estava.
O próprio Bruno Henrique tratou de negar a nova “prova” do Flamengo, ao dizer que em nenhum momento ouviu a palavra negro.
E esta era também a primeira desqualificação dos peritos contratados pelo time carioca, que afirmaram ter havido a ofensa a Bruno Henrique, a nova vítima do time do Ninho do Urubú, o belo centro de treinamento do mais querido.
Na sequência viria outra.
O INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos) fez um comunicado à imprensa dizendo entre outras coisas o seguinte: “O INES, a despeito de possível expertise que possa vir a ter qualquer um de seus servidores, não possui a competência para se manifestar sobre questões que requeiram habilidades de leitura labial” .
Por sua vez, o Bahia fez quatro laudos periciais, dois dos quais com peritos com experiência internacional e forense. Foram todos taxativos em dizer que nada que comprovasse a injúria racial que teria sido cometida por Ramirez foi encontrado. Ao mesmo tempo, afirmaram que houve injúria xenofóbica por parte de Bruno Henrique.
Que sentimentos entram em jogo numa partida com aquela intensidade, inclusive de emoções que vão em direções completamente opostas?
Qual o tamanho da sensação de perda em um jogo com aquelas características e que recursos podem ser, já foram e ainda serão utilizados no futebol para reverter situações assim?
Qual o tamanho dessa perda e o que ela pode representar diante da proximidade de uma eventual e esperada conquista de um título?
Há quem possa saber e controlar o que dita o inconsciente de cada um dos que vivem esse processo?
Que sensações poderão ter passado pela mente de Gerson naquele momento em que seu time parecia ter assegurado a vitória com extrema facilidade e de repente sofre uma virada com aquela força e qualidade, que pode desorientar qualquer adversário?
Foi altamente frustrante ver as análises feitas pela nossa imprensa.
Foi altamente decepcionante perceber mais uma vez a incapacidade de vários jornalistas e repórteres em analisar manifestações que deixavam de pertencer ao futebol, por refletirem algo que, apesar de acontecerem com muita força também no futebol, encontram em outras esferas do comportamento humano a sua explicação.
Mostraram-se pequenos outra vez e sem nenhuma inteligência e sensibilidade estiveram a poucos passos de interferir de maneira desastrosa na carreira de um jovem jogador de futebol.
Teria Ramirez, um garoto de 23 anos, lido ou ouvido em algum lugar que sonhos não morrem?
Sonhos não morrem, Ramirez!
Sonhos não podem morrer.
Morrendo, morremos todos e cada um de nós.
Que bom que você, no que deverá ser um dos piores momentos de sua carreira ainda na fase inicial, está em um clube cuja diretoria demonstra possuir essas coisas chamadas inteligência, sensibilidade, serenidade…, tão em falta nos tempos que vivemos.
Obs. Quem desejar ver a íntegra da entrevista de Guilherme Bellintani, é só clicar aqui www.youtube.com/watch?v=i3j9RQVfACI&feature=youtu.be