Evidências e opiniões

Por Ronaldo Souza

Há alguns dias, (Domenico) Ricucci fez uma postagem interessante no Instagram, com milhares de curtidas. O título, Limite apical dos procedimentos do tratamento endodôntico: Biologia é o que faz a diferença!

Veja o que ele diz na legenda da 1ª imagem:

“O comprimento de trabalho foi estabelecido na constrição apical, exclusivamente por meio de radiografias periapicais. A patência apical não foi realizada”.

Embaixo, no texto, ele diz:

“Estou fazendo algumas considerações sobre a questão do limite apical. Num momento em que a Endodontia tem tomado um caminho errado, o respeito pela constrição apical continua crucial para o sucesso clínico e histológico a longo prazo”.

Na legenda da imagem seguinte, ele mostra que a obturação está a 1,6 mm aquém do ápice radicular e acrescenta que “tal tratamento, com preparo cônico do canal, mantendo a curvatura apical e obturação homogênea na constrição apical representa excelência técnica, de acordo com os princípios da escola endodôntica biológica”.

Os negritos com palavras grifadas não são meus e sim de Ricucci.

Cabem algumas considerações.

  1. A primeira diz respeito à minha absoluta concordância com a frase “Biologia é o que faz a diferença”. Dispensa comentários.
  1. Além das divergências quanto à existência de um local específico que possamos definir como o ponto de constrição apical, parece haver aqui outra incongruência. Tendo sido o comprimento de trabalho estabelecido “na constrição apical”, vê-se que mais adiante ele diz e mostra o CT desse caso como sendo 1,6 mm aquém do ápice radicular. A certeza da constrição apical pela percepção tátil não tem se mostrado confiável e não tem sido recomendada pela literatura endodôntica, com a qual Ricucci tem contribuído de maneira relevante e inegável. Para mais, a literatura não tem demonstrado ser comum a “constrição apical” se apresentar tão distante do ápice radicular.
  1. Defensor contumaz de que sob nenhuma hipótese o limite apical de trabalho deve ultrapassar a fronteira da constrição apical, ele faz questão de afirmar enfaticamente que “a patência apical não foi realizada”, expressando mais uma vez a sua crítica a esse procedimento.
  1. Também como legenda de imagem, ele diz: “Tal tratamento, com preparo cônico do canal, mantendo a curvatura apical e obturação homogênea na constrição apical representa excelência técnica, de acordo com os princípios da escola endodôntica biológica”

Para ilustrar melhor essa discussão, trago o caso clínico abaixo realizado por Fernando Gavazza, aluno do sétimo semestre da nossa faculdade, cuja semelhança com o caso apresentado por Ricucci é muito grande. Há algumas coisas em comum entre os dois casos clínicos, como a manutenção da curvatura apical, conicidade do canal, homogeneidade da obturação, o não extravasamento de material obturador, cimento obturador à base de óxido de zinco e eugenol…

Há, porém, entre eles, pelo menos duas diferenças, uma delas crucial, para usar a expressão utilizada por Ricucci. No nosso, não só foi feita a patência, como também a instrumentação do canal cementário, ensinada aos nossos alunos como rotina nos casos de lesão periapical.

A segunda é que na primeira radiografia de acompanhamento realizada por Ricucci 7 meses depois, o reparo está em andamento, porém ainda incompleto. Na sequência, percebe-se que a lesão periapical desapareceu. No nosso caso, a primeira e única radiografia de acompanhamento, realizada 6 meses após o tratamento, já mostra o completo desaparecimento da lesão periapical.

Reação inflamatória menos intensa, neoformação cementária com selamento biológico completo e processo de reparo mais rápido parecem ser o que se deve esperar quando se faz a instrumentação do canal cementário. É o que sugerem os resultados do artigo abaixo*.

Nos dois casos, o aqui apresentado e o de Ricucci, há lesão periapical, o que aponta para a existência de infecção no canal radicular, inclusive no canal cementário, como tem demonstrado amplamente a literatura.

Tendo em vista que a “biologia é o que faz a diferença”, biologicamente, parece sensato ignorar 1,6 mm de infecção no canal?

A resposta pode vir de imediato: claro, tanto é que deu certo.

Diante desta, uma contrarresposta também pode ser imediata: e os que não dão?

Sigamos com as respostas na ponta da língua.

E quem garante que fazendo a instrumentação do canal cementário dará certo em todos os casos?

Ninguém!

Não há espaço para certezas. A Endodontia pede um olhar mais inteligente.

Estamos diante de um impasse incontornável?

Não!

Estamos, sim, diante de um velho problema: a questão do consagrado e discutível tema das evidências científicas. Não é oportuno discuti-lo agora, mas nada impede que algo seja dito para fechar a nossa conversa e, quem sabe, abrir essa discussão em outro momento.

Haveria uma certa conveniência quando se argumenta em nome das evidências?

Teríamos mais convicções do que evidências?

As evidências parecem ser menos usadas do que se imagina e se pretende fazer parecer. As opiniões apoiadas na experiência ainda ocupam lugar de destaque nesse processo. Há autores e professores que têm noção clara desse fator e sabem usá-lo. Admitamos ou não, eles têm peso na formação de profissionais, principalmente dos mais jovens. 

A necessidade de discernimento clínico é sempre enfatizada para a formação do bom profissional e isso é interessante. Deve-se perceber, entretanto, que o discernimento clínico costuma andar mais de mãos dadas com as evidências do que com as opiniões.

Discernimento é bom senso.

Costuma-se dizer que em Endodontia se briga por meio milímetro.

Por que será?

Trago de volta a frase que escrevi aí em cima: Biologicamente, parece sensato ignorar 1,6 mm de infecção no canal?

Acrescento outra: o bom senso recomendaria ignorar 1,6 mm de infecção no canal?

* A imagem abaixo mostra o trabalho original de minha orientanda, Paula Brandão, no mestrado da nossa faculdade. Observe que o título é “Influência da Instrumentação do Canal Cementário no Reparo de Lesões Periapicais: Estudo em Ratos”, mas no artigo publicado (aí em cima) o periódico colocou como foraminal enlargement (ampliação foraminal), expressão que considero equivocada.