Por Ronaldo Souza
O processo inflamação/reparo é de uma beleza ímpar.
Passei a conhecê-lo através do livro de Patologia de Robbins, onde mora o melhor capítulo sobre o tema.
Mas foi outro livro de Patologia, o de Catanzaro Guimarães (USP Bauru), que me trouxe grande inquietação há muitos anos:
“Terminada a pulpectomia… tanto o coágulo como a faixa necrótica subjacente intensificam a reação inflamatória aguda ao longo do coto pulpar remanescente… sendo que na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar.“
Não era verdade. Não podia ser!
Eu tinha aprendido que o coto pulpar era intocável, sagrado, e que, diante de agressão mecânica e/ou química, seu destino era a necrose. Necrosado, tudo estaria perdido.
Vou corrigir.
Não era que eu tinha aprendido. Era assim que todos ensinavam, o que é bem diferente.
Aprender é fruto de interpretação, portanto, pode-se aprender “errado” por conta de uma interpretação equivocada.
Quando digo que “era assim que todos ensinavam”, é porque aquele conceito de coto pulpar intocável e sagrado era consensual, era o que estava estabelecido como certo.
E, no entanto, ali estava um livro de Patologia me dizendo que “… na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar.“
Ora, se “na maioria dos casos o processo necrótico envolve todo o coto pulpar“, na maioria dos casos o tratamento endodôntico em canais com polpa viva dá… errado!
É lógico!
Mas, como, se a grande maioria desses casos dava certo e é justamente onde há o maior percentual de sucesso do tratamento endodôntico?
O que dizia a literatura endodôntica e o que ensinavam os professores de Endodontia?
“Não há reparo quando não se preserva a vitalidade do coto pulpar”
Havia, portanto, um abismo entre o que dizia a Patologia e o que dizia a Endodontia!
Livros de Histologia, primeira edição brasileira do livro Microbiologia Médica (Mims, Playfair, Roitt, Wakelin e Williams)… livros!
Durante cerca de nove meses parei tudo; não lia mais nada. Só estudava Histologia, Microbiologia e Patologia.
Nove meses!
Já falei sobre isso algumas vezes em aula e somente agora me ocorre que é o período de uma gestação, tempo em que, diariamente, mundo afora, nascem novas mentes.
Uma cabeça, um mundo!
A Patologia me fez pensar.
Ao pensar, refiz tudo na minha mente. Mesmo sem ainda saber do “direito ao delírio”, eu me permitia delirar.
Ah! A Ciência, que maravilha!
Sempre livre, independente, sem conceitos preestabelecidos e imutáveis, sem correntes a amarrá-la.
Onipotente!
Abro um parêntese
– E o que está errado?
Em entrevista à revista “Isto é”, em setembro de 2009, fizeram essa pergunta a Olga Soffer, antropóloga e arqueóloga da Universidade de Illinois, e ela respondeu:
– Não é a Ciência. Alguns acadêmicos é que são arrogantes e se esquecem da mera condição de ser humano.
Fecho o parêntese.
A Ciência não se incomoda, pelo contrário, mas, aqui e ali, alguns cientistas se sentem desconfortáveis com quem ousa.
Pensar é transgredir (Lya Luft).
Ao pensar, conceitos intocáveis e sagrados podem sofrer abalos.
A periodontite apical sob o aspecto clínico/radiográfico
Quando a inflamação envolve o tecido pulpar de maneira que o tratamento não consegue mais reverter a sua evolução, é comum desencadear-se o processo em direção à necrose pulpar, com as suas possibilidades e consequências.
Neste momento, o envolvimento/destruição do tecido ósseo medular já deverá estar ocorrendo. Entretanto, por ainda ser incipiente, essa lesão não se manifesta radiograficamente.
Em outras palavras, a periodontite apical já existe, mas não aparece na radiografia periapical. No seu processo evolutivo, ocorre maior destruição óssea e então ela se manifesta radiograficamente. A periodontite apical, que já existia, agora aparece na radiografia periapical.
Evidencia-se a necessidade do tratamento endodôntico.
Se eu perguntasse qual é o objetivo do tratamento endodôntico, não tenho dúvida de que você responderia que é remover a causa da patologia do paciente. Por uma razão bem simples: todo tratamento de uma patologia tem como objetivo remover a sua causa. Caso contrário, não haverá reparo.
Qual é a patologia?
A periodontite apical!
Tratamento endodôntico realizado, bem conduzido, o que nos resta?
Uma vez que a causa da periodontite apical, necrose pulpar/infecção do canal (sistema de canais) é removida, não deve restar outra alternativa que não seja o seu desaparecimento.
Portanto, antes do tratamento endodôntico, na evolução da periodontite apical:
- Inicialmente ela surge no osso medular, mas não aparece na radiografia
- na sequência, evolui, aumenta de tamanho e promove maior destruição óssea
- passa a “existir” também na radiografia periapical
Estima-se que são necessários cerca de três-quatro meses para que a periodontite apical ganhe imagem radiográfica. Alterações radiográficas mais sutis já podem estar presentes, mas não a imagem que caracteriza a lesão periapical.
Aliados a essas alterações radiográficas mais sutis, sinais e/ou sintomas clínicos eventualmente presentes representam fatores fundamentais para o estabelecimento de diagnóstico. É sempre bom lembrar que o relato do paciente também desempenha papel relevante.
Nesse momento, se você fizer uma tomografia de feixe cônico, ou, simplesmente, tomografia, poderá ter uma surpresa. A periodontite apical em evolução, que não existe na imagem radiográfica, deverá “aparecer” na imagem tomográfica.
Como já vimos, pela remoção da causa, proporcionada pelo tratamento bem realizado, o resultado que se deve esperar é o desaparecimento do efeito; a periodontite apical.
Algo importante deve ser relembrado. Uma vez que não se consegue eliminar a infecção do sistema de canais, deve-se ter em mente que a expressão mais adequada a essa etapa do tratamento é controle de infecção.
Portanto, após o tratamento endodôntico, na involução da periodontite apical:
- Inicialmente, a perda óssea e o tamanho da lesão diminuem
- a lesão deixa de “existir” na radiografia periapical
- mas continua existindo no osso medular
Em outras palavras, a lesão periapical não existe mais na imagem radiográfica. Neste momento, entretanto, não pode ser motivo de surpresa a sua presença na imagem tomográfica.
Aplique o conhecimento que você tem do processo inflamatório na sua fase evolutiva:
Na fase inicial da evolução da periodontite apical, ela não aparece na imagem radiográfica porque é incipiente, há pouca destruição óssea. Neste momento, ela está “escondida” da radiografia.
Agora, aplique o mesmo conhecimento do processo inflamatório no sentido contrário.
Na fase final da involução da periodontite apical, ela não aparece na imagem radiográfica porque apresenta menor perda óssea e diminuiu de tamanho. Assim, ela volta a ficar “escondida” da radiografia.
Da mesma forma que ela “precisou” de algum tempo (cerca de três-quatro meses) para surgir, precisará de algum tempo (quanto???) para desaparecer inteiramente.
Sob essa linha de raciocínio (existe outra?), a presença da lesão periapical detectável somente pela tomografia não deve representar fracasso do tratamento endodôntico.
Permita-me dizer isso de outra maneira.
Você acompanhou radiograficamente o surgimento e aumento de tamanho da lesão periapical no dente de seu paciente. Fez o tratamento endodôntico, acompanhou a diminuição da lesão periapical e agora vê o seu desaparecimento; ela não existe mais.
Considerando-se sempre que nas duas situações, diagnóstico e proservação, o exame do paciente é realizado (subtendendo-se, portanto, que sinais e sintomas e o relato do paciente são observados), a pergunta é: há razões que justifiquem a confiança na imagem radiográfica no diagnóstico, mas não no acompanhamento desse paciente?
Ou seja, ela serve para uma situação, mas não serve para a outra?
O processo inflamação/reparo não é um gesto dos deuses. É um fenômeno fisiológico, com mecanismos próprios que obedecem às regras do organismo. Precisamos entender e aprender a agir de acordo com ele.
“Estima-se que são necessários cerca de três-quatro meses para que a periodontite apical ganhe imagem radiográfica.”
Lembra-se dessa frase lá em cima?
A literatura sempre nos ensinou que mesmo antes do surgimento da lesão periapical na imagem radiográfica, ela já existe há cerca de três-quatro meses
O processo fisiológico inflamação/reparo é dinâmico e as células que participam dele são basicamente as mesmas. O que muda é a proporção na presença delas, que ocorre de acordo com o estágio do processo.
De acordo com o momento, células que configuram a defesa do organismo contra a agressão predominam no local da agressão. Uma vez eliminada ou controlada a causa, mensagens bioquímicas são enviadas e esse panorama muda, passando a predominar aquelas mais diretamente associadas ao reparo da destruição tecidual.
É esse dinamismo, com toda sua riqueza de ações e reações celulares e vasculares, que transforma o binômio inflamação/reparo em algo “de uma beleza ímpar”.
Entretanto, além da perplexidade e encantamento com tudo que o constitui, é necessário entendê-lo. É fundamental que o profissional de qualquer especialidade da área da saúde o conheça minimamente e nunca é demais lembrar que a Endodontia está inserida nesse contexto.
Assim, se o profissional desprezar esse fato e não reconhecer a necessidade de entender esse binômio, ele passará sua vida indo a eventos de Endodontia para comprar instrumentos e materiais para alargar e obturar canais.
Mas, dificilmente, ele se tornará um endodontista!
Tendo esse conhecimento, ele saberá, por exemplo, que, controlada a causa da inflamação, o reparo deverá ser o destino final, o desfecho do caso.
Entenderá que, enviadas as mensagens que “anunciam” o controle da causa da lesão periapical (infecção do sistema de canais), o processo de reparo, que sempre esteve presente, verá as células que o configuram dominarem o cenário inflamatório.
Uma vez que o momento em que as células que configuram o reparo predominam nesse cenário, ou seja, uma vez que o reparo é “iniciado”, não há mais como reverter esse momento.
Precisamos entender que, uma vez iniciado, o reparo não será impedido de cumprir e concluir suas etapas. Somente diante de eventuais modificações nesse cenário (por exemplo, nova contaminação do sistema de canais), a continuação do reparo poderá sofrer interferências.
https://www.youtube.com/watch?v=HjmfSjkhByM
É isso que, mesmo sem conhecê-lo em profundidade, o clínico observa e percebe ao fazer o acompanhamento clínico/radiográfico do seu paciente. Compreendendo o surgimento, desenvolvimento e estabelecimento da lesão periapical, ele saberá o que fazer para que o seu tratamento seja bem-sucedido.
Ao ter essa compreensão, realizado o correto tratamento, ele saberá entender a dinâmica do reparo. Essa dinâmica envolve evolução e involução da patologia durante todo o tempo do tratamento/proservação.
A imagem, seja ela radiográfica ou tomográfica, não. Estática, ela fala apenas do momento em que é realizada.
Na Endodontia, radiografia e tomografia caminham juntas e juntas desempenham papel da maior relevância, algo inquestionável.
Justamente por isso, a tomografia dispensa qualquer comentário sobre a importância do seu uso na Endodontia.
Entretanto, não tem sido incomum ter-se a sensação de que sua imprescindibilidade em todos os momentos do tratamento endodôntico é a verdade a ser considerada. Às vezes até em detrimento da radiografia.
Há que ter muito cuidado no trato com essas duas grandes e valiosas ferramentas na Endodontia.
A acuidade e a validade da aplicação da tomografia na Endodontia dispensam qualquer discussão e não é este o objetivo deste texto. Trata-se tão somente de tentar trazer de volta e enfatizar a importância da discussão sobre a periodontite apical em si e, com isso, fazer conhecer a(s) melhor(es) maneira(s) de tratá-la.
Se eu fosse um astrônomo, certamente daria enorme valor a lunetas e telescópios, mas não suportaria perder a noção de que busco conhecer as estrelas.