O aluno chega com uma radiografia na colgadura e diz:
– Professor, ‘tá bom?
– Não, tire meio.
Você já viu essa cena alguma vez? Como aluno, vi e fiz muitas vezes. Ainda vejo muito. Essa é uma das maiores provas, não a única, dos equívocos que cometemos ao ensinar a Endodontia. O que será desse aluno como profissional? Quais são as chances de que ele venha a ser, de fato, um bom endodontista?
A resposta é bem simples. Se ele não tiver potencial para exercer análise crítica e discernir e/ou não encontrar em algum outro momento alguém que modifique essa orientação, não são grandes as suas chances.
Ao longo dos anos, endodontistas autômatos têm sido gerados. Infelizmente, são poucos os endodontistas autônomos. Dizemos-lhes, tire meio, ponha meio, tire um, ponha um, trave o cone, não está bem travado, trave melhor. Não lhes damos espaço para a dúvida; por que tirar meio? Por que colocar meio? Por que travar perfeitamente o cone? E se eu não travar tão bem, o que acontece?
Não precisamos observar muito para perceber vários momentos como esse na relação dos alunos/profissionais com a Endodontia. Querem um exemplo?
Vamos utilizar o próprio tema desse nosso bate-papo; uma discussão sobre o comprimento de trabalho que deve ser utilizado. Ela, fatalmente, nos leva a tentar entender como se comportam os tecidos ápico/periapicais diante do preparo do canal, de como devem reagir nos casos de polpa viva e necrosada, a necessidade ou não de medicação sistêmica diante de um pós-operatório desconfortável para o paciente, enfim, a discussão nos levaria a entender o processo. Vem alguém, mostra alguns dispositivos dizendo que eles localizam com exatidão o ponto onde o canal deve ser instrumentado e pronto; para que eu preciso entender se a tecnologia me dá tudo pronto? Morre a discussão, morre a compreensão.
Uma vez, eu estava assistindo em uma faculdade (digamos, como convidado) a uma aula de graduação às 07:00 de uma segunda-feira (não era às 19:00, era às 07:00, da manhã), ou seja, horário perfeito para uma aula. Tinha aluno cochilando, namorando (não me diga que você nunca viu namoro em sala de aula), fazendo “cachinhos” no cabelo. De repente, um desavisado (aluno de graduação ligado na aula às sete da manhã de uma segunda-feira só pode ser um tarado), levanta a mão e, para o espanto de todos, uma pergunta; Professor, no livro do professor De Deus,… Não, aqui não fazemos assim.
O parágrafo anterior terminou muito bruscamente, não foi? Pois é, foi assim que terminou o momento que podia salvar uma aula às sete da manhã de uma segunda-feira. Na hora da pergunta, toda a sala, inclusive eu que estava sentado lá atrás observando tudo, se mexeu nas cadeiras, por sentir um alento de vida, uma pergunta que geraria neles, alunos, uma discussão; um momento para a reflexão.
É aí que está o problema; a reflexão. É muito mais fácil tirar meio.