É ou deveria ser?

Recentemente, Delfim Netto* publicou um artigo, cujo título é O fracasso da economia acadêmica. Ele começa dizendo que “em 1609, Galileu Galilei, (1564-1642) depois de ter aperfeiçoado um instrumento construído um pouco antes por óticos holandeses, produziu uma luneta que chamou de ‘Perspicillum’. Com ela deu origem a uma revolução na astronomia”.

Mais adiante, em outro parágrafo ele diz. “Mas qual a importância disso agora, há de perguntar-se, irritado, um daqueles economistas que se pensa portador da ‘verdadeira’ ciência econômica? Eu também uso a matemática! A pequena diferença é que o seu ‘tipo’ de conhecimento tem muito mais a ver com Aristóteles esteticamente matematizado do que com Galileu. Em lugar de tentar entender como funciona o sistema econômico, tenta ensiná-lo como deveria funcionar em resposta à beleza dos seus axiomas…”

Um conhecimento esteticamente matematizado pode nos levar a teorias interessantes. Mas, há um risco. Idealizamos tão bem, criamos teorias tão consistentes, que passamos a imaginar que aquela não é a última palavra, é a única. Pelas formulações que fizemos, pelas respostas que encontramos, muitas vezes passamos a ensinar não como funciona, mas como deveria funcionar. A prática às vezes nega. Nem sempre é como se imagina.

Mas, isso é ciência, é assim que ela funciona. Ocorre que a hegemonia do pensamento muitas vezes retarda de forma exagerada o avanço da ciência. Reinou absoluto durante muito tempo, mas o sistema financeiro desmoronou. Nele, não havia espaço para o outro, para uma outra forma de pensar. Mas, adaptando a frase de Delfim Neto, “qual a importância disso agora, há de perguntar-se, irritado, um daqueles endodontistas que se pensa portador da ‘verdadeira’ ciência endodôntica”?

Já fiz algumas vezes a analogia entre as descobertas de Galileu Galilei (posteriormente às de Nicolau Copérnico), e as resistências encontradas quando se vai de encontro aos dogmas da Endodontia. Já que Delfim Neto falou em Aristóteles e Galileu, permita-me acrescentar algo. O pensamento Aristotélico era o reinante na época, o que a própria Igreja Católica seguia. Foi justamente esse o receio maior de Galileu (já tinha sido antes de Copérnico), ir de encontro ao pensamento que reinava. Quando o fez, foi condenado. Ele contestou um dogma científico. Não se faz isso sem pagar um preço.

Quando Larzs Spangberg, um investigador biológico consagrado em toda a comunidade científica endodôntica, disse no editorial de 2003 do Oral Surgery… que “todas as informações obtidas das pesquisas endodônticas de laboratório precisam ser sistematicamente provadas em estudos clínicos randomizados para distinguir fato de ficção”, é bem provável que ele já tivesse percebido a curta sobrevida da ciência sem a clínica.
 
Qual é a concentração de hipoclorito de sódio que você usa? Qual? Ah, sim, 2,5%. Você sabe que até bem pouco tempo atrás você seria condenado, como Galileu foi, por dizer isso? Por que? Porque os trabalhos mostravam que essa concentração era altamente tóxica aos tecidos vivos. Pelo que mostravam os resultados, tinha-se que usar solução fisiológica para irrigar os canais, porque essa concentração é biocompatível. Uma beleza de axioma**.

Aceitou-se depois, o hipoclorito de sódio a 0,5% e mais tarde a 1%. Por que hoje se usa cada vez mais o hipoclorito de sódio a 2,5%? Porque além da beleza das estrelas, há algo mais no firmamento. Interpretou-se o trabalho de Grossman e Meiman como algo que indicava a necessidade de baixas concentrações de hipoclorito de sódio. Não seria o contrário, isto é, pelas dificuldades de se remover o conteúdo do canal, dever-se-ia utilizar uma concentração que proporcionasse maior ação solvente?

Para proteção dos tecidos ápico/periapicais, particularmente do coto pulpar, era fundamental a colocação de uma “gota” de hidróxido de cálcio sobre o coto pulpar. Uma beleza de axioma. A clínica não foi capaz de confirmar a viabilidade desse procedimento na rotina dos consultórios.

Por que não instrumentar o canal cementário? Para não agredir os tecidos periapicais. Os trabalhos mostram que quando se manipula o forame gera-se uma reação inflamatória nos tecidos (periapicais) vizinhos. O canal cementário é, assim, uma região sagrada. Uma beleza de axioma. Será que entendi bem? Quer dizer que um determinado segmento do organismo humano, mesmo infectado, é sagrado, não deve ser manipulado, é isso?

O pensamento Aristotélico diz, ao longo desses últimos mais de cinquenta anos, que se a obturação do canal não for hermética não há sucesso e vários trabalhos “provaram” isso. Daí a necessidade de se vedar todas as entradas/saídas do sistema de canais. Onde estão os registros da confirmação dessa teoria na literatura? A hegemonia do pensamento não permitiu sequer a discussão da sensatez e viabilidade da concepção. Que se condenem e levem à fogueira idéias contrárias.

Já disse em outra oportunidade que não basta elaborar belas hipóteses e a partir delas ensinar como fazer um tratamento endodôntico. É preciso saber e entender o que ocorre no tratamento endodôntico, para que se possa ter a melhor noção da validade ou não dos nossos postulados teóricos na aplicação clínica. A Endodontia registra alguns momentos em que os resultados clínicos entraram em choque com o que se idealizara nos laboratórios.

O neoliberalismo é um modelo falido, e com ele faliu o mundo. O interessante é que alguns cardeais do neoliberalismo estão negando o que fizeram e já estão dando entrevistas de como as coisas devem ser feitas para salvar o mundo (no Brasil, todos os dias estão na televisão dizendo o que o governo deve fazer). O sufocamento de novas idéias parece ser comum  também na ciência endodôntica. São criticadas com o devido respaldo do conhecimento esteticamente matematizado. Mas, como diz Victor Hugo***, “é possível resistir à invasão dos exércitos, não à invasão das idéias”. Diante do surgimento delas, ensinam a fazer. E desejam assumir a paternidade.

Adaptando a frase de outro artigo de economia, desta vez de Dani Rodrik****, a culpa não é da endodontia, é dos endodontistas.

* Antônio Delfim
Netto – economista e político paulista.
** Axioma – premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente verdadeira sem exigência de demonstração.
*** Victor Hugo – (1802-1885), escritor e poeta francês de grande atuação política em seu país.
**** Dani Rodrik – economista americano, professor na Escola de Governo, de Harvard.